domingo, 24 de novembro de 2019

Das lágrimas

Mal começa a falar, as lágrimas lhe saltam aos borbotões e a psicóloga lhe dirige a caixinha de lenços. Ela começa, então, a tirar os lenços, um-a-um, cuidadosamente. Dobra os que estão na sua mão e empurra de volta pra dentro da caixa o próximo, a ser utilizado por outros pacientes ou por ela mesma dali a alguns minutos. O olhar baixo no lenço que vai sendo dobrado até o seu limite enquanto ela fala sem parar da sua dor. O lenço é alçado para enxugar as lágrimas que já escorrem até o pescoço e ela volta a dobrá-lo, alisando suas bordas, como se precisasse ordenar alguma coisa naquele cenário. Nas sessões seguintes, parece estar em disputa consigo mesma: "hoje eu não chorei"; "lá vem o choro de novo" e "dessa vez eu não acabei com os lenços todos".

Já ele, homem, não chora nunca. Insiste e tenta convencer de uma apatia em relação a tudo o que há no mundo, insiste em dizer que essa é sua questão. E talvez até seja, mas não porque não sinta. Sentir dói muito e o choro talvez denuncie a dor que ele não quer sentir. Assim, ele não chora nunca. Nunca.

Os homens, em geral, não choram em análise, na sessão, o que não implica em dizer que não confessem ali suas dores e vulnerabilidades. Outro desses, também nunca chorou em sessão, mas sempre relata suas inseguranças e suas lágrimas que correm na intimidade do seu quarto. Ali, relata o que sente como se falasse de um personagem que não ocupa o mesmo corpo que o seu, mas que sabemos - e ele sabe também - que divide com ele este corpo.

El'outra também não chora; aliás, até ali não havia chorado. Postura muito analítica, quer entender tudo, todas as nuances e miudezas do que está sendo feito na sessão, o que está sendo feito, aliás, da sua história. Certo dia, falava de algo aparentemente banal e as lágrimas lhe vieram inadvertidamente, assustando-a: enquanto chora, se pergunta de onde vem aquilo, o que foi capaz de lhe arrancar tantas lágrimas. A psicóloga permanece sem responder, e a deixa passar com a sua dor.

Outra dessas mulheres, forte, tenta nunca chorar, mas aprendeu finalmente a fazê-lo. Puxa os lenços aos montes, tentando prevenir que lavem seu rosto e seu colo. Faltava a semana seguinte à cada sessão em que se mexia algo de muito importante, queria evitar o choro e a dor. O manejo da psicanálise prevê essas coisas, e diante das intervenções feitas, ela passa a ir sem falta, e já vai preparada, com os grandes e estilosos óculos escuros pra sair dali invulnerável aos outros.

Mais uma delas assume aquele espaço como sendo o de colocar aquelas dores pra fora. Parece achar que uma sessão não chorada é uma sessão perdida. Vai disposta a mexer no que há de mais dolorido. Pega dois ou três lenços na caixa, enxuga as lágrimas e aperta os lenços com tanta força que, molhados e pressionados, eles viram pequenos fragmentos. Claramente não lhe é fácil confessar suas fraquezas, suas dores e dúvidas: entre a resistência em falar daquilo e a injunção que faz a si mesma de ter que falar e mergulhar no sofrimento, o fim do lenço de papel representa bem o que sente.

Os usos que se pode fazer do espaço analítico são os mais diversos possíveis. A regra de que se fale  de tudo que vem à mente implica em tratar do real e do banal, do que claramente traz consigo a marca do sofrimento e do que mascara uma dor profunda. O que se faz com as mãos, com os lenços, com o olhar, com a barra da saia ou com a garrafinha de água, tudo fala do que faz ali questão.

Chorar não pressupõe a dor, menos ainda a cura que se espera em análise, mas diz respeito apenas a uma forma de se dirigir ao Outro, a um modo de revisitar e ressignificar sua história. Freud já havia ensinado que o propósito da análise não é acabar com a dor - afinal ela faz parte da vida - mas sim a de tornar uma dor neurótica, com a qual não se consegue viver, em uma dor banal, e Lacan, por sua vez, já nos esclareceu que a cura esperada nada mais é do que saber conviver com o seu sintoma.

E assim, as lágrimas continuarão a fluir diante dos afetos inerentes à vida bem sentida. Alguns aprenderão sobre a libertação que o choro proporciona, e derramarão mais lágrimas, outros conseguirão enfrentar as novas dificuldades com menos desespero e guardarão as lágrimas. Outros ainda permanecerão sem derramá-las, mas talvez consigam entender o choro que lhes perpassa o espírito, encontrando nele as perguntas para seguir adiante.

terça-feira, 2 de abril de 2019

O tempo do sujeito-criança


“Ah, tia, não quero pai viado não!”

Eis que ela, tão vilipendiada e estigmatizada, tinha voz e opinião, mas não apenas isso: tinha também seus preconceitos. Há quem possa querer lhe tirar até esse direito. Ora, não é ela sujeito no mundo como nós todos? Não se constituiu ela num mundo dado, prenhe de intolerâncias? No seu imaginário, líamos: não bastasse ser órfã de mãe viva, abandonada durante toda sua vida, teria ela que se conformar com o primeiro pai que aparecesse? E logo ela que aprendera com a mãe violentadora que o amor bem podia figurar em abuso, mas esse amor aí... não, não, aí já era demais!
Foi ali que entendemos que o tempo do sujeito – especialmente do sujeito-criança – não encaixava no tempo do mundo: nos prazos legais, nas metas de reinserção, nos dados de adoção tardia. Porque não era o caso de não lhe dar o direito de manifestar seu desconforto e até sua recusa discriminatória, mas sim o de lhe fazer pensar sobre o que aquela presença desejosa de paternidade lhe fazia sentir, de lhe fazer ponderar e ressignificar conceitos nodais na sua vida e, por que não?, nos fazer repensar certos conceitos em nossa vida também. O que consiste, afinal, em se fazer família? O que significa dar e receber amor?
Foram nove meses de malabarismo. Simbólicos nove meses de manejo. Entre a criança, o futuro pai e, a parte mais difícil, os operadores de direito que queriam cumprir os prazos legais e carimbar o procedimento como concluído. A primeira, cheia de dúvidas, ansiedades e inseguranças, perguntava, fantasiava, construía e destruía seus castelos de areia pra construir outro e outro e mais outro. O futuro pai, informado sobre cada pedaço de caminhada com sua desejada filha, era pura ansiedade: queria dizer que não havia problemas, que ela havia de se acostumar e de aprender a amá-lo como era, mas logo conseguiu entender que era possível aproveitar aquele tempo para ajudá-la em seus castelos que buscavam um material mais estável e seguro que aquela areia que sempre se desfazia no primeiro vento. Com os últimos, foram incontáveis os relatórios descrevendo o andamento, os procedimentos, o trabalho cuidadoso, e neles registrávamos o mantra: é preciso respeitar o tempo da criança. Repetíamos aquilo em cada novo documento, até que esse mantra foi apropriado por eles e virou, contra a sua própria natureza, ele mesmo um procedimento.
Com o tempo, a criança começou a fazer visitas à casa do futuro pai, casa que em algum momento seria dela também. No primeiro final de semana, perdeu a sandália no pé de goiabeira, deixando lá parte de si e justificando a necessidade de voltar pra procurar. No próximo, os bichos da casa – meio casa, meio sítio – eram seus bichos, a cama de visita era sua cama e ele era seu pai – e ela sequer lembrava da qualificação que lhe dava lá no início, aquela que introduz nosso texto.
Começamos, então, a ventilar sua ida definitiva e como tinha de ser, a angústia crescia dentro de si: angústia de realizar o desejo de finalmente ter uma família, angústia de enfim ter um amor tão diferente do que aprendera a vivenciar ao longo de sua vida. Junto a isso, claro, cresciam as resistências. Testes e mais testes. Propostas, negociações, tentativas de salvaguarda e de garantias. Mantinhamos a conversa. Os operadores continuavam questionando, em um vernáculo sempre mais complexo: “o que é que está faltando?”. Insistíamos no mantra.
Não era ela também sujeito?, repetimos. As ambivalências tomavam conta do seu ser tão pequeno e no entanto tão carregado de histórias de violência e abandono. Será possível um amor assim? E se não for real e duradouro, é possível voltar àquela vida que, nada ideal, é a que eu conheço e vivo desde muito tempo? Era uma vontade ansiosa de ir imediatamente, mas as malas nunca estavam prontas... havia alguma coisa que sempre faltava.
Queria a segurança de ter pra onde voltar, se tudo desse errado. Queria mais ainda a segurança de que jamais voltaria, porque tudo ia dar certo. Não vai, tia? Olhos nos olhos, em meio a todas aquelas pactuações, em meio a todos os questionamentos, restava ali um pedido de que tudo daria certo, até porque tudo sempre já deu muito errado, sua vida inteira.
É preciso respeitar o tempo da criança. O tempo do sujeito, entretanto, não tem tempo – não esse tempo cronológico do relógio da parede que anuncia o passar dos minutos, não aquele do calendário que passa a cada folha arrancada – o tempo do sujeito só acontece, em outra lógica... em outro tempo. Era tempo, então, de deixar o tempo acontecer. Em nove meses, simbolicamente, ela renascia filha do pai viado que, naquele momento, era apenas pai. Pai de amor, pai de recomeço. Pai que lhe ensinaria que o amor é diverso e não violento.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

A violência do descuido


Errar não é humano, depende de quem erra


“Errar é humano!” dizemos e repetimos. Descuidar-se pode ser efeito da pressa, da pressão, da desatenção, da negligência, da imprudência, da imperícia, da apatia, da ignorância. Talvez haja outras fontes, talvez muitas sejam facetas de um mesmo problema e talvez isso nem faça tanta diferença, porque o que importa mesmo é o que vem depois disso, quando um equívoco que se quer insignificante significa uma violência, uma nova marca.
Pois aquele jovem, que eu encontrava pela primeira e última vez, colocou-me face à face com a violência, com seus hematomas expostos, roxos, inchados, imponentes, ostensivos e cheios de sangue pisado. Chegou quase carregado pela mãe que não suportou a violência. Que queria que atitudes fossem tomadas. Ele pedia pra “deixar quieto”, temendo que o enfrentamento lhe trouxesse represálias, como sempre.
Isso eu processo cognitivamente hoje. Naquele momento eu processei tudo em um nível emocional que se confundia, na minha razão ou no meu processo de racionalização, com meu desejo de justiça, e fiquei ao lado da mãe dele.
Aqui uma digressão se faz necessária. Preciso antecipar as acusações possíveis a uma psicóloga que “escolhe” um lado e age pela emoção: sim, isso pode acontecer, especialmente quando esta profissional está posta em um contexto social e político de carência e de violências as quais jamais havia testemunhado. O pulo do gato aqui não é não sentir, mas saber reconhecer os sentimentos e agir protegida pelo manto do tecnicamente possível, o que não implica em frieza ou calculismo, mas em estar pautada nos métodos que sustentam sua atuação.
Dito isto, a demanda que me era posta dizia sobre algo muito mais profundo: sobre ser violentado por ser quem é e não pelo que fez (Foucault já nos ensinou um bom pedaço sobre isso) e da minha própria parte, sobre meu papel político, qual seja o de tornar grave um erro que se queria desimportante, sobre me tornar apoio e escudo ao ser humano diante de mim quando o que havia era a violação de seus direitos.
Voltemos ao jovem e à sua mãe. Ele vinha de uma noite muito mal dormida na delegacia especializada. Havia meses que ele havia cometido um ato infracional. Havia meses que ele já havia cumprido a medida socioeducativa relativa a este ato infracional. Desde então, nenhum envolvimento em atos ilícitos. E ele ainda assim “dormiu” na delegacia. E ele ainda assim apanhou na delegacia.
Comecei, então, a tentar entender o que havia acontecido. Na delegacia, ouço de um agente a justificativa, que sequer começava a se configurar como um pedido de desculpas: a gente esqueceu de arquivar o processo dele e foi feita uma nova busca e apreensão. Falava com um meio sorriso no rosto, de constrangimento, sim, mas especialmente em um esforço de minimizar o que ele chamava de descuido. Diante da minha reação nada simpática – eu agia pela bile – ele responde, agora numa atitude arrogante, que no melhor dos casos, o moleque merecia, afinal santo ele não era.
Esse é o problema da dívida da violência. Ela parece impagável. Tanto para esse agente da lei que parecia não acreditar que o preço cobrado pela instituição que ele mesmo representava não havia sido justo e para quem os juros continuariam correndo “ad infinitum”, mas também para o jovem que, em sua mudez consternada, volta e meia murmurava um “não era melhor que eu estivesse aprontando mesmo?”
A próxima visita foi à corregedoria, porque aquele caso precisava ser denunciado e os agentes responsáveis punidos, se não em nome do jovem e de sua mãe, vítimas da violência, ao menos por serem tais agentes protagonistas do crescimento da violência urbana. Ou os crimes a serem pagos deveriam ser apenas os desses jovens periféricos?
A minha entrada naquela instituição causou um rebuliço. Depois entendi que eles já estavam cientes do erro cometido, que os agentes haviam se antecipado e convencido a todos com aquele argumento de que o moleque não era nenhum santo – o que, havemos de convir, não deve ter sido nada difícil de fazer. Eu continuava a marcha: falava com um, este se esquivava dizendo que não era com ele; falava com outro, aquele indicava um superior, até que cheguei no manda-chuva, não sei se da classe ou se da violência mesma.
Começo um enfrentamento com ele. Antes de qualquer coisa, ele faz questão de me perguntar meu nome e com muita gentileza, pega em meu crachá e começa a anotar, como se quisesse me fazer uma ameaça velada. Não sei se por atrevimento, ignorância ou ainda sob o efeito da atitude biliosa, faço o mesmo com ele e deixo claro que preciso dar nome aos bois quando for escrever o meu relatório para a justiça.
No meio da discussão, o menino fala, como se pedisse desculpas pela ousadia e como se quisesse deixar claro pro “polícia” que aquela ideia não era dele: explica que foi sua mãe que ficou revoltada e que ele não quer problema pro lado dele. O chefão da casa garante que não haverá represálias. Eu garanto a ele que conheço a comunidade e que saberei se elas existiram, ainda que a família não se disponha a fazer novas denúncias.
Saio dali de nariz empinado e marcando os passos com um salto que fazia um toc toc tão arrogante e agressivo quanto eu mesma, olhando no olho de quem se atrevesse a me olhar. O rapaz parecia mais confiante e saía tranquilo e honesto daquele lugar, com os hematomas mais leves no seu corpo ainda dolorido. Para sua mãe, a violência parecia ter sido neutralizada e pela primeira vez, pelo menos na atitude dela, parecia que aquela dívida estava paga.



segunda-feira, 27 de agosto de 2018

A experiência da liberdade (l'expérience de la liberté)

Hoje conto a história de uma menina, frágil e cheia de medos, que foi se descobrindo mulher, forte e corajosa. Livre define melhor, eu acho. O grande paradoxo é que foi justamente a chegada de um novo medo, o medo de perder essa liberdade, que criou a necessidade de que essa história fosse contada, numa tentativa de consolidar esse novo eu.
O medo sempre teve parte em sua vida, é verdade. Medo de partir, medo de voltar, medo de começar, medo de arriscar, mas ela sempre foi – e continua a ir – com medo mesmo. E se é pra sentir medo de qualquer forma, ela então decidiu finalmente viver como se contraísse uma doença aguda, dessas que atacam de um só golpe, de forma insuportavelmente intensa, ao contrário da vida crônica em que a dor - mas também a alegria - se pulveriza na rotina, no cotidiano, sofrendo aos poucos antes de sofrer de verdade, pra se acostumar e suportar, e sendo alegre em doses homeopáticas, como se receasse gastá-la toda de uma vez.
Dessa vez não. Dessa vez ela resolveu viver em outro mundo, assustador como é tudo aquilo que é desconhecido, que desponta no horizonte longe e turvo. Ela apostou todas as cartas, e sabe que foi o melhor investimento de sua vida. Foi uma explosão, uma libertação em todos os níveis. Dessa explosão, aliás, não há jamais como recolher todos os pedaços. Deixa por aí pedaços que ela sabe que não mais se encaixarão na sua história, pedaços outros que se espalham pelo mundo e assim cumprem seu papel, bem como junta à sua história outros tantos retalhos que ela foi encontrando, colhendo e costurando.
Antes de partir, acreditou que podia encontrar sua liberdade no lugar mesmo onde esta constitui lema, valor fundamental. Antes de retornar, compreende que essa liberdade foi a vivência de uma “licença poética”. Percebeu como estar fora de sua cultura, de seu lugar, de sua língua, lhe possibilitava não pertencer fingindo fazer parte até poder ser tudo e qualquer coisa. E ela viveu tudo a partir da personagem da mulher que sonhava em ser, subvertendo toda e qualquer injunção anterior e descobriu-se capaz de tudo. Livre para errar e se experimentar naquelas vestimentas culturais tão distintas, era como se acertasse sempre, e a potência que encontrou em si era quase assustadora, não fosse ela justamente o contrário disso.
Tentamos sempre definir tudo: o nosso papel, o nosso lugar no mundo... o que é viver bem, nos perguntamos. O que significa viver nosso Desejo? O que é ter liberdade? Alguns acreditam que é livre aquele que vive só, sem vínculos afetivos. Outros acham que são as amarras morais que devem ser desfeitas para conquistar esse valor tão caro. Outros ainda estão certos de que precisam conhecer o mundo inteiro, sem raízes, e só então serão verdadeiramente livres. A nossa protagonista, muito simplesmente, descobriu que sua liberdade era apenas uma decisão, uma permissão que ela precisava dar a si mesma, permissão para ser, para viver.

Hoje ela sabe que volta pra um mundo que não existe ainda, porque ela é outra e suas novas lentes jamais verão o mesmo horizonte e as mesmas fronteiras. Ela sabe que a rotina vai existir e que ela vai retomar uma vida e uma dinâmica que lhe esperam intactas, e isso ainda te causa medo, provavelmente pela promessa de conforto que comporta, esse conforto sempre tão perigoso, que seduz ao comodismo e à estagnação. No entanto, em algum lugar dentro dela, ela sabe que algo mudou, que é de dentro pra fora que a liberdade se conquista, que só se vive o Desejo, seja isso o que puder ser, no risco de tudo perder e de tudo ganhar.

                                                                      ***

Aujourd’hui je vous raconte l’histoire d’une petite fille, fragile et effrayée, qui devient une femme, forte et courageuse. Dire d’elle qu’elle devient libre c’est une definition plus précise, je pense. C’est l’arrivée d’un nouveau sentiment de peur qui a crée le besoin de raconter cette histoire, comme si c’était une tentative de consolider ce nouveau moi, voilà le grand paradox.
La peur a toujours été présente dans sa vie, c’est vrai. La peur de partir, la peur de retourner, la peur de commencer, la peur de prendre des risques, mais elle est toujours allée – et elle va encore – faire face à cette peur. C’est pour ça qui elle a decidé de vivre finalement comme si elle avait une maladie aiguë, le type de maladie qui nous prend d’une seule coup, d’une façon insupportablement intense. Jusqu’à ce moment-là, elle a vit comme si la vie était une maladie chronique dont la douleur – mais dans ce cas, aussi la joie – puisse se pulvériser dans la routine quotidienne, pendant les jours, en faisant souffrir peu a peu avant que la vrai souffrance vient, a fin de s’y habituer, et au même temps en n’étant qu’un peu joyeuse, pour éviter dépenser tout la joie rapidement.
Pas cette fois. À ce moment là elle a voulu vivre ailleurs, dans un autre monde effrayant, comme sont toujours ces realités qu’on ne connait pas, qui sont loin et nuageux sur l’horizont. Ella a joué toutes les cartes et maintenant elle sait qui c’était le meilleur investissement de sa vie. C’était une explosion, une libertation sur tous les niveaux. De ça qui a éclaté, il n'y a pas solution pour le reconstituer. Elle laisse ailleurs les morceaux qui ne vont plus s’adapter à son histoire, il y a des autres morceaux qui sont partout, et encore elle rassamble à son histoire des petites pièces qu’elle a rencontré sur son vécu.
Avant partir, elle croyait qu’elle pourrait rencontrer sa liberté à l’endroit où la liberté est un valeur fondamental (dont la liberté, l’égalité et la fraternité). Avant de rentrer chez elle, elle a compris qu’elle l’a vécu comme si c’était une licence poethique[1]. En étant etrangère, dehors de sa propre culture, de sa place, parlant un autre langue, elle s’est rendu compte des possibilités multiples de le vivre. Ainsi, elle pouvait être ce qu’elle voulait. Et elle l’a pu vivre en étant la femme qu’elle a toujours revé d’être, et alors elle a subverti toutes les injunctions anterieures et elle a découvert une femme puissante. Libre à faire des erreurs et aussi de vivre des éxpériences habillées aux costumes d’une autre culture, elle a eu l’impression de ne jamais faire des erreurs, donc voilà la puissance qui pourrait être effrayant, mais c’était en fait son contraire.
On veut toujours établir des définitions: quel est notre role, notre place au monde... qu’est-ce que c’est de bien vivre, c’est un question qu’on se pose souvent. Qu’est-ce que c’est qu’être libre? Plusieurs pensent qu’être libre c’est vivre sans liens d’affectivité. Il y a des autres qui pensent qui ce sont les croyances d’ordre moral qui doivent être détruit pour qu’ils soient libres. Il y a encore ceux qui ont la conviction qu’ils doivent conaître tout le monde, sans avoir des racines, pour qu’ils puissent être vraiment libres. Par contre, notre protagoniste a découvert, tout simplement, que sa liberté n'était qu'une décision, qu'une pérmission qu’elle avait besoin de se donner, la permission d’être, la permission de vivre.
Aujourd’hui elle rentre dans une monde qui n’existe pas, pas encore, parce qu’elle a des nouvelles lunnettes et elle ne pourra plus voir le même horizon ou les mêmes limites. Elle sait qu’il y aura de routine et qu’elle reprendra des activités qui restent les mêmes et ça lui faire peur, surtout à cause de la promis de confort, toujours si dangereux, parce qu’elle nous fasse s’arrêter confortablement et ne plus chercher les défis. Malgré tout ça, elle sait qui quelque chose a changé, que la liberté n’est conquert qu’a partir de soi même, qui le Désir n’est vécu qu’a partir du risque de tout perdre ou de tout gagner.



[1] Je m’excuse pour les erreurs d’ortographie, mais aussi pour mon impossibilité d’exprimer quelques idées: ce que j’appelle licence poethique c’est à dire une permission de tout dire, de tout faire travers des outils comme la metaphore, celles qui existent dans la poesie et dans l’art en general.

Je rémercie enórmement mon amie Fatima-Marie Said, qui a fait des corrections du texte, même si je n'ai pas pu les accepter dans sa totalité en raison du sens qui je voulait donner au texte dans son ensemble. Du coup, je suis encore désolée pour ces parties qui sont dures (peut-être impossibles) à comprendre en français.


Agradeço ainda à minha amiga Ana Almeida, com quem tive inúmeras conversas sobre esse assunto, a última delas tendo sido um pontapé para que eu decidisse escrever esse texto e a quem eu devo o mérito de fazer referência à licença poética.

terça-feira, 17 de julho de 2018

Quando a palavra perde o eco

Ele era apenas uma criança quando emudeceu. Pela idade, o esperado era que brincasse com os outros, tagarelasse muito, perguntasse o por quê das coisas, mas as contingências da vida o calaram.
Não, não falarei de contingências e sim de golpes... Todos os laços afetivos que havia desenvolvido até ali foram ceifados de sua vida, um a um, tirando-lhe o sentido da palavra. Para que falar, quando não há quem escute? O que perguntar, se não há quem responda?

A palavra liberta. Da minha parte, escrevo para tentar organizar algo, de mim ou do mundo como a mim se apresenta, sejam as ideias que pululam, o caos que atravessa, a dor que representam essas histórias e/ou a alegria de saber que elas possam encontrar caminhos além do sofrimento. A palavra, no entanto, precisa de sentido para existir. Precisa, aliás, ser ela capaz de produzir algum sentido.

O nosso menino conviveu muito cedo com diversas violências e o acolhimento institucional tornou-se a única saída naquele momento para ele e suas irmãs. O sistema, no entanto, prontamente o separou da mais velha e ele certamente não pôde entender essa primeira perda. Naquele ponto ainda tinha outra irmã e visitas pontuais da mãe que tentava resgatar sua "maternidade". Em pouco tempo, alguém decide que isso não seria possível e, sem qualquer explicação, é a mãe que desaparece da sua vida. Resta-lhe ainda uma irmã. Esta, também criança, torna-se a sua responsável: cuida, protege, garante a estrutura familiar mínima. Mas ela também parte sem aviso prévio ou posterior que o valha.

Então ele calou. Problema instalado, a urgência para resolver: "Liguem pras irmãs!". Elas atendiam o telefone, falavam, choravam do outro lado da linha enquanto ele permanecia mudo e aparentemente impassível, esperando autorização para voltar a brincar - autisticamente - com seus brinquedos. Atendimentos, estratégias lúdicas, desenhos, etc., nada funcionava.

Foi então que se abriram as casas. Nelas, embora ainda em ambiente institucional, deveria haver algo de um lar: uma mãe, um sentimento de família, uma re-união daqueles que sofreram as faltas de sentido de um sistema tão perverso. Ele finalmente reencontrou uma das irmãs e encontrou um espaço que se tornaria seu. Encontrou um guarda-roupa, gavetas e prateleiras. Encontrou espaços pessoais e convivenciais. Encontrou uma irmã de sangue e irmãos de coração. Encontrou uma mãe cuidadosa que lhe dava um lugar e uma função na casa e na vida e enfim, encontrou até mesmo uma profissional da psicologia designada apenas para ele (ao contrário daquela profissional do serviço de saúde que atendia a todas as crianças, como ocorria antes).

Por muitos dias, ele ainda nada dizia. Nos primeiros, arrastava um saco com seus pertences pra lá e pra cá, como se explorasse o espaço, como quem verifica e decide se pode finalmente desligar o estado de alerta, de desconfiança e de prevenção da dor que, no entanto, já está há muito instalada. Aos poucos, encontra espaço para seus pertences, encontra também lugar para o seu ser naquela rotina, e eis que um dia uma palavra surge... primeiro como um som quase ininteligível, depois como palavras reunidas até se tornar uma enxurrada de frases e de ideias, como se ele precisasse fazer escoar tudo que ficara guardado por tanto tempo.

É engraçado como costumamos associar a palavra com significados e separá-la do afeto, compreendendo-o como aquilo que não pode ser expressado semanticamente. Pois foi naquele momento mesmo, no momento em que ele voltou a encontrar as palavras, que ele parece ter se aberto novamente para o amor, para novas possibilidades de fazer laços e de resgatar aqueles que já pareciam rompidos. Não é possível dizer o que veio antes, se a abertura para o afeto ou a possibilidade de falar, mas é certo dizer que havia novo sentido ali, era então possível sentir e ser.

O amor e a palavra precisam de alguma segurança, ou melhor dizendo, de confiança. Aquele que sente e que fala precisa acreditar que nada será usado contra si, precisa sentir a convicção de que a entrega que faz, embora sem garantias de reciprocidade, possa ser recebida com a mesma autenticidade com que é lançada. Os riscos do "ser sujeito", inevitáveis que são, estão sempre lá, é certo, mas tornam-se enfrentáveis se se acredita haver onde pousar, se há consistência e pertinência.

sábado, 31 de março de 2018

O pequeno grande Hulk


-“Tia, mas não é justo! Não é justo, não é justo, não é justo!”
(Ela sabia que não era, mas conhecia elementos que ele desconhecia e precisava dizer/fazer algo que produzisse sentido para ele.)
- “Você sabe me dizer qual é a maior fraqueza do Hulk?”
(Ele entendeu que estava sendo associado a um de seus personagens favoritos, e pareceu gostar da comparação, a princípio...)


Naqueles tempos havia um rapazinho de grande inteligência, esta que, no entanto, não o salvava da ignorância de não saber por que estava ali e não onde queria, e não onde tinha certeza de que podia estar. Desde muito novo crescia naquele lugar e neste momento beirava sua pré-adolescência, como gostamos de nomear. As crescentes decepções se somavam à sua história de vida que não lhe passava irrefletida.

As promessas eram muitas. Elas não eram feitas por pessoas, já que estas não queriam se comprometer, mas partiam de sua observação sistemática dos processos pelos quais passava durante anos e das decisões tomadas nesse período: a alienação total da família era então seguida por visitas recebidas por esta, pontuais, periódicas e/ou frequentes e que finalmente se tornavam idas também pontuais, periódicas e/ou frequentes à casa daquela. Quando tudo parecia correr bem, quando tudo parecia finalmente se resolver para que ele enfim retornasse ao seio familiar, algo acontecia. Nas primeiras vezes, ele, confuso, perguntava o que havia ocorrido. Com o tempo ele sabia melhor do que nós quando tudo recomeçaria, e aquela história se tornaria um looping que parecia infinito...

Tentava, então, antecipar-se ao resultado e salvar aquela nova tentativa. Numa dessas ocasiões, tentou minorar a gravidade do problema que ainda nem era conhecido e quando percebeu seu insucesso, logo acusou: "Como é que a senhora, que terminou a primeira série, a segunda série e todas as séries que existem, não consegue resolver isso que eu, que sou uma criança, sei como resolver?". Sua frustração era gritante e sua inteligência impotente era o que mais doía, não sei ao certo se nele ou se em nós todos. 

Freud, lá em 1920, observou que seu neto, sendo deixado em seu berço enquanto os pais iam cuidar de seus afazeres, inventara uma brincadeira: dizia ele "fort" e "da" (que significa lá e aqui) enquanto jogava um carretel preso a uma linha para longe do seu campo de visão e logo o trazia de volta para si. Interpretou o pai da psicanálise que aquela brincadeira era a forma que o garoto tinha de reproduzir a situação angustiante da perda em que os pais somem de seu campo de visão e voltam à sua revelia, tornando-se ele mesmo o regulador dos momentos de sumiço e de retorno do carretel.

O nosso personagem também tentava controlar sua angústia, embora de outra forma. Raivas se acumulavam a cada frustração: raiva da mãe que não conseguia quebrar aquele ciclo interminável, raiva da juíza que não decidia logo para que ele saísse dali, raiva daquelas que cuidavam dele e que não conseguiam resolver seu problema, mesmo tendo estudado tanto e passado por "todas as séries que existem". Essa raiva tornava-se cada vez menos contida e a linguagem da violência, aprendida na pele desde cedo e permanecido na memória - especialmente motora - o fazia agir, talvez à sua revelia e à força de algo nele que ele também não controlava.

Tentávamos dar-lhe a via catártica do desabafo. Chorar e gritar que nada daquilo era justo era permitido, mas não era suficiente. Jamais seria.

A tarefa clínica de escuta e acolhimento precisa ir além da catarse, ainda que não dê a solução pragmática esperada. No ato analítico, aliás, nunca se dá a resposta desejada; esta só será disponibilizada por outras vias, a partir de outras funções. Tal tarefa exige técnica, mas parece exigir algo da ordem de uma sensibilidade algo intuitiva que deve reunir a técnica a uma ética de tudo acolher, à experiência do que se vive, do que se experimenta no mundo e, enfim, de tudo poder ser usado como instrumento e ferramenta de trabalho.

Agora ele se antecipava ainda mais: novamente acontecia uma daquelas coisas que dariam reset no jogo da sua vida, e então ele tinha um "ataque de fúria" e quebrava tudo à sua frente, na escola, na casa, na sala do médico ou da psicóloga. Talvez ansiasse pelo castigo de não ser autorizado a ir à casa que, mais uma vez, não seria ainda seu lar. Quiçá só quisesse dar vazão à sua raiva por um resultado que embora ainda não houvesse chegado, era líquido e certo. 

Era evidente que tais "ataques" diziam algo sobre sua dor e frustração, que ele afinal queria assumir o controle sobre tudo aquilo que lhe escapava, mas os efeitos da violência são sempre nefastos, especialmente para uma "criança de abrigo". Cada ato enfurecido produzia mais estigma sobre si, maior rejeição institucional e maior sentimento de falta de controle sobre os caminhos da sua vida. Ele, entre o orgulho de jamais se arrepender do que fizera e o medo da perda do amor combinado com um desejo de redenção, ia ali tentar justificar o ato e avaliar suas possibilidades de perdão.

Foi então que aquela pergunta lhe fora feita, a única que uma dada “intuição” clínica seria capaz de fazer diante daquela conjuntura. Sem soluções a dar e sem castigos a impor, questiona-se qual seria a maior fraqueza do Hulk. Ele, pensativo, responde em negativa, já que aquele herói, forte e destruidor, só guardaria para si as características da potência.

- "É que ele só vira o Hulk quando tem muita raiva e então não é mais o Bruce Banner que controla os próprios atos, mas é o Hulk que toma conta dele. Quando isso acontece, além de atingir o inimigo, ele acaba destruindo tudo em volta, podendo até machucar aqueles a quem ama e a si mesmo..."


quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Como se atreve?

Um novo bebê chega à grande casa de crianças. Seu nome, escolhido às pressas e à revelia daquela que o pariu, vem junto do nome dela, mais familiar do que se gostaria. Ser mãe, dizem uns, é uma dádiva. Já outros dizem que é um talento. Fala-se até de perfil, como se fosse uma vaga de emprego - o mais importante dentre os que há na vida, dizem ainda.
Ela, usuária de drogas, certamente não tinha o perfil, e aqui essas pessoas estão erradas por princípio, até que se prove o contrário, se for possível fazê-lo. A criança, mal nascida, chega já com uma história obscura que denunciava aquela que se propunha a tornar-se mãe sem poder sê-lo.
"A genitora, viciada em crack, queria vender o filho ainda no ventre para comprar drogas". A futura mãe, compradora do futuro filho, até então aparentemente não questionava tal imoralidade. A futura mãe acompanhava todo o pré-natal e pagava o que tivesse que ser pago para finalmente ter seu filho. Ela tinha certeza de que tinha o talento e que merecia essa dádiva que não cabia à outra.
A criança nasce e a genitora declara ser mãe, desfazendo qualquer acordo. Não se sabe se pelo cheiro, se pelo toque, se pelo olhar ou se sempre fora uma estratégia dela que queria sair da rua, que queria abrigo e cuidado para se preparar para o novo momento da sua vida. Bem sabia ela que não tinha o tal perfil, talvez, mas fora denunciada em seu intuito de vender seu bebê: drogada, viciada, egoísta... como ela se atrevia em desejar ser mãe, esta figura que é toda entrega, cuidado e amor pro outro?
A genitora, que agora (ou sempre?) queria ser mãe, vociferava, ameaçava, falava na linguagem da rua, sua velha conhecida. Aquele linguajar e aquele tom, no entanto, só conseguiam condenar seu projeto de se mostrar potencialmente mãe: era o nono filho que lhe roubavam, gritava ela. Era o nono bebê que ela tentava vender, dizia a vizinhança da quase futura mãe.
Sua luta era vã. Não seria ainda mãe. Não naquele momento, não daquela forma. Ela prometera, no entanto, que iria parir quantos bebês fossem necessários até que pelo menos um pudesse ser seu e que ela finalmente pudesse tornar-se mãe e tudo o mais que aquilo pudesse significar.