Eram duas irmãs negras. Eram meninas
negras que sonhavam com uma mãe loira e linda, como se um adjetivo trouxesse o
outro a tiracolo. Fantasiavam essa mãe até quase aluciná-la, como algumas meninas e mulheres sonham com um príncipe encantado em um cavalo branco. Por
óbvio, ela não seria apenas loira e linda, mas uma mãe boa, que lhes daria
presentes, lhes faria comidas deliciosas e atenderia a todos os seus pedidos.
Em um esforço de suspender uma primeira
interpretação para não incorrer no risco de aceitar prontamente uma análise muito
superficial, comecei a supor algumas possibilidades. Pensei que talvez essa
mulher fantasiada fosse um contraponto da mãe real, negra, violenta, e que as explorava
sexualmente. Achei ainda que poderia ser uma promessa de mãe a qual elas
tiveram acesso, e de fato elas haviam tido uma ou duas madrinhas afetivas loiras,
ricas e lindas, mas que por algum motivo, tinham desistido de seu
apadrinhamento[1].
Questionei-me até que ponto não eram assim as mulheres admiradas da televisão, das
novelas, dos comerciais e das revistas.
Durante o período de mais de três anos em
que (con)vivi com elas, me chamava a atenção como elas haviam absorvido, em sua
construção de identidade, um desprezo por si próprias. Não, elas não se
automutilavam, elas não eram depressivas e tampouco suicidas. Eram meninas
plenas de vida, de questões e de sonhos, porém elas simplesmente gostavam e
admiravam tudo que não era seu, tudo o que não se assemelhava a si, que não
lhes guardava identidade. Bonito era o cabelo loiro e liso da tia, e não o
seu, que precisava se manter violentamente preso e oleado. Delicada era a pele
branca da outra criança, que corava ao ar livre, e não a sua, escura, retinta,
que se acizentava após um dia de diversão ao sol. O nariz, a boca, até os
pés... do outro (aqui ganhando o sentido real do diferente) era sempre mais
bonito.
As tias, muitas vezes também negras,
sabiam que deveriam "trabalhar" essas questões com as crianças, ouviam
dizer que eram justamente tais questões que implicariam na
constituição subjetiva da criança e da mulher adulta que elas se tornariam. Entendiam
que era preciso desconstruir qualquer autoimagem negativa que tivessem, mas essas
mesmas tias, muitas vezes também negras, costumavam achar o cabelo liso e loiro
das mulheres da televisão mais bonitos que o delas e entendiam que deveriam
prender os cabelos crespos violentamente e mantê-los oleados, os delas mesmas e
os das crianças.
As tias, muitas vezes também negras, orientavam
e explicavam – certas de que “trabalhavam” tais questões – àquelas meninas
negras, que elas precisavam saber se apresentar para conquistar seu espaço,
ainda que isso implicasse, em um nível subliminar, que elas devessem vestir
uma espécie de disfarce que as fizesse passar por meninas brancas e
comportadas, como se, mais uma vez, um adjetivo carregasse o outro a tiracolo.
Mais do que as outras meninas, elas
precisavam saber se comportar, especialmente para não atrair olhares e para não assanhar os cabelos tão
violentamente presos e oleados. Mais do que as outras meninas, elas deveriam se
comportar perante os meninos, para não expor qualquer tipo de sexualização
precoce (no seu caso, inevitável pela violencia sofrida anteriormente e que as
levara ali).
Apesar de tudo isso, era preciso não exagerar
e não deixá-las acreditar que elas seriam um dia loiras e lindas, este último
adjetivo, lembremos, sempre colado ao primeiro. Como se tentassem preservá-las da realidade
cruel, violentava-se acarinhando, penteando e, finalmente, relaxando e
escovando seus cabelos. Como se tentassem preservá-las da realidade cruel,
deixavam claro, com meias palavras amorosas e cafunés, que aquelas meninas,
talvez tal qual elas mesmas, precisavam entender os limites do seu lugar no
mundo.
Presas no paradoxo entre o seu ideal e o
seu (im)possível, só podia lhes sobrar a fantasia da mãe loira e linda que, boa
e generosa, tomava-as para si, tornando-as quiçá um pouco menos negras,
permitindo-lhes amarem-se a si próprias um pouquinho mais.