quinta-feira, 18 de outubro de 2018

A violência do descuido


Errar não é humano, depende de quem erra


“Errar é humano!” dizemos e repetimos. Descuidar-se pode ser efeito da pressa, da pressão, da desatenção, da negligência, da imprudência, da imperícia, da apatia, da ignorância. Talvez haja outras fontes, talvez muitas sejam facetas de um mesmo problema e talvez isso nem faça tanta diferença, porque o que importa mesmo é o que vem depois disso, quando um equívoco que se quer insignificante significa uma violência, uma nova marca.
Pois aquele jovem, que eu encontrava pela primeira e última vez, colocou-me face à face com a violência, com seus hematomas expostos, roxos, inchados, imponentes, ostensivos e cheios de sangue pisado. Chegou quase carregado pela mãe que não suportou a violência. Que queria que atitudes fossem tomadas. Ele pedia pra “deixar quieto”, temendo que o enfrentamento lhe trouxesse represálias, como sempre.
Isso eu processo cognitivamente hoje. Naquele momento eu processei tudo em um nível emocional que se confundia, na minha razão ou no meu processo de racionalização, com meu desejo de justiça, e fiquei ao lado da mãe dele.
Aqui uma digressão se faz necessária. Preciso antecipar as acusações possíveis a uma psicóloga que “escolhe” um lado e age pela emoção: sim, isso pode acontecer, especialmente quando esta profissional está posta em um contexto social e político de carência e de violências as quais jamais havia testemunhado. O pulo do gato aqui não é não sentir, mas saber reconhecer os sentimentos e agir protegida pelo manto do tecnicamente possível, o que não implica em frieza ou calculismo, mas em estar pautada nos métodos que sustentam sua atuação.
Dito isto, a demanda que me era posta dizia sobre algo muito mais profundo: sobre ser violentado por ser quem é e não pelo que fez (Foucault já nos ensinou um bom pedaço sobre isso) e da minha própria parte, sobre meu papel político, qual seja o de tornar grave um erro que se queria desimportante, sobre me tornar apoio e escudo ao ser humano diante de mim quando o que havia era a violação de seus direitos.
Voltemos ao jovem e à sua mãe. Ele vinha de uma noite muito mal dormida na delegacia especializada. Havia meses que ele havia cometido um ato infracional. Havia meses que ele já havia cumprido a medida socioeducativa relativa a este ato infracional. Desde então, nenhum envolvimento em atos ilícitos. E ele ainda assim “dormiu” na delegacia. E ele ainda assim apanhou na delegacia.
Comecei, então, a tentar entender o que havia acontecido. Na delegacia, ouço de um agente a justificativa, que sequer começava a se configurar como um pedido de desculpas: a gente esqueceu de arquivar o processo dele e foi feita uma nova busca e apreensão. Falava com um meio sorriso no rosto, de constrangimento, sim, mas especialmente em um esforço de minimizar o que ele chamava de descuido. Diante da minha reação nada simpática – eu agia pela bile – ele responde, agora numa atitude arrogante, que no melhor dos casos, o moleque merecia, afinal santo ele não era.
Esse é o problema da dívida da violência. Ela parece impagável. Tanto para esse agente da lei que parecia não acreditar que o preço cobrado pela instituição que ele mesmo representava não havia sido justo e para quem os juros continuariam correndo “ad infinitum”, mas também para o jovem que, em sua mudez consternada, volta e meia murmurava um “não era melhor que eu estivesse aprontando mesmo?”
A próxima visita foi à corregedoria, porque aquele caso precisava ser denunciado e os agentes responsáveis punidos, se não em nome do jovem e de sua mãe, vítimas da violência, ao menos por serem tais agentes protagonistas do crescimento da violência urbana. Ou os crimes a serem pagos deveriam ser apenas os desses jovens periféricos?
A minha entrada naquela instituição causou um rebuliço. Depois entendi que eles já estavam cientes do erro cometido, que os agentes haviam se antecipado e convencido a todos com aquele argumento de que o moleque não era nenhum santo – o que, havemos de convir, não deve ter sido nada difícil de fazer. Eu continuava a marcha: falava com um, este se esquivava dizendo que não era com ele; falava com outro, aquele indicava um superior, até que cheguei no manda-chuva, não sei se da classe ou se da violência mesma.
Começo um enfrentamento com ele. Antes de qualquer coisa, ele faz questão de me perguntar meu nome e com muita gentileza, pega em meu crachá e começa a anotar, como se quisesse me fazer uma ameaça velada. Não sei se por atrevimento, ignorância ou ainda sob o efeito da atitude biliosa, faço o mesmo com ele e deixo claro que preciso dar nome aos bois quando for escrever o meu relatório para a justiça.
No meio da discussão, o menino fala, como se pedisse desculpas pela ousadia e como se quisesse deixar claro pro “polícia” que aquela ideia não era dele: explica que foi sua mãe que ficou revoltada e que ele não quer problema pro lado dele. O chefão da casa garante que não haverá represálias. Eu garanto a ele que conheço a comunidade e que saberei se elas existiram, ainda que a família não se disponha a fazer novas denúncias.
Saio dali de nariz empinado e marcando os passos com um salto que fazia um toc toc tão arrogante e agressivo quanto eu mesma, olhando no olho de quem se atrevesse a me olhar. O rapaz parecia mais confiante e saía tranquilo e honesto daquele lugar, com os hematomas mais leves no seu corpo ainda dolorido. Para sua mãe, a violência parecia ter sido neutralizada e pela primeira vez, pelo menos na atitude dela, parecia que aquela dívida estava paga.



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