Errar
não é humano, depende de quem erra
“Errar é humano!” dizemos e repetimos.
Descuidar-se pode ser efeito da pressa, da pressão, da desatenção, da
negligência, da imprudência, da imperícia, da apatia, da ignorância. Talvez
haja outras fontes, talvez muitas sejam facetas de um mesmo problema e talvez
isso nem faça tanta diferença, porque o que importa mesmo é o que vem depois
disso, quando um equívoco que se quer insignificante significa uma violência,
uma nova marca.
Pois aquele jovem, que
eu encontrava pela primeira e última vez, colocou-me face à face com a
violência, com seus hematomas expostos, roxos, inchados, imponentes, ostensivos
e cheios de sangue pisado. Chegou quase carregado pela mãe que não suportou a
violência. Que queria que atitudes fossem tomadas. Ele pedia pra “deixar
quieto”, temendo que o enfrentamento lhe trouxesse represálias, como sempre.
Isso eu processo
cognitivamente hoje. Naquele momento eu processei tudo em um nível emocional
que se confundia, na minha razão ou no meu processo de racionalização, com meu
desejo de justiça, e fiquei ao lado da mãe dele.
Aqui uma digressão se
faz necessária. Preciso antecipar as acusações possíveis a uma psicóloga que “escolhe”
um lado e age pela emoção: sim, isso pode acontecer, especialmente quando esta
profissional está posta em um contexto social e político de carência e de
violências as quais jamais havia testemunhado. O pulo do gato aqui não é não
sentir, mas saber reconhecer os sentimentos e agir protegida pelo manto do
tecnicamente possível, o que não implica em frieza ou calculismo, mas em estar
pautada nos métodos que sustentam sua atuação.
Dito isto, a demanda
que me era posta dizia sobre algo muito mais profundo: sobre ser violentado por
ser quem é e não pelo que fez (Foucault já nos ensinou um bom pedaço sobre
isso) e da minha própria parte, sobre meu papel político, qual seja o de tornar
grave um erro que se queria desimportante, sobre me tornar apoio e escudo ao
ser humano diante de mim quando o que havia era a violação de seus direitos.
Voltemos ao jovem e à
sua mãe. Ele vinha de uma noite muito mal dormida na delegacia especializada.
Havia meses que ele havia cometido um ato infracional. Havia meses que ele já
havia cumprido a medida socioeducativa relativa a este ato infracional. Desde
então, nenhum envolvimento em atos ilícitos. E ele ainda assim “dormiu” na
delegacia. E ele ainda assim apanhou na delegacia.
Comecei, então, a
tentar entender o que havia acontecido. Na delegacia, ouço de um agente a
justificativa, que sequer começava a se configurar como um pedido de desculpas:
a gente esqueceu de arquivar o processo dele e foi feita uma nova busca e
apreensão. Falava com um meio sorriso no rosto, de constrangimento, sim, mas
especialmente em um esforço de minimizar o que ele chamava de descuido. Diante
da minha reação nada simpática – eu agia pela bile – ele responde, agora numa
atitude arrogante, que no melhor dos casos, o moleque merecia, afinal santo ele
não era.
Esse é o problema da
dívida da violência. Ela parece impagável. Tanto para esse agente da lei que
parecia não acreditar que o preço cobrado pela instituição que ele mesmo
representava não havia sido justo e para quem os juros continuariam correndo “ad
infinitum”, mas também para o jovem que, em sua mudez consternada, volta e meia
murmurava um “não era melhor que eu estivesse aprontando mesmo?”
A próxima visita foi à
corregedoria, porque aquele caso precisava ser denunciado e os agentes
responsáveis punidos, se não em nome do jovem e de sua mãe, vítimas da
violência, ao menos por serem tais agentes protagonistas do crescimento da
violência urbana. Ou os crimes a serem pagos deveriam ser apenas os desses
jovens periféricos?
A minha entrada naquela
instituição causou um rebuliço. Depois entendi que eles já estavam cientes do
erro cometido, que os agentes haviam se antecipado e convencido a todos com
aquele argumento de que o moleque não era nenhum santo – o que, havemos de
convir, não deve ter sido nada difícil de fazer. Eu continuava a marcha: falava
com um, este se esquivava dizendo que não era com ele; falava com outro, aquele
indicava um superior, até que cheguei no manda-chuva, não sei se da classe ou
se da violência mesma.
Começo um enfrentamento
com ele. Antes de qualquer coisa, ele faz questão de me perguntar
meu nome e com muita gentileza, pega em meu crachá e começa a anotar, como se
quisesse me fazer uma ameaça velada. Não sei se por atrevimento, ignorância ou
ainda sob o efeito da atitude biliosa, faço o mesmo com ele e deixo claro que
preciso dar nome aos bois quando for
escrever o meu relatório para a justiça.
No meio da discussão, o
menino fala, como se pedisse desculpas pela ousadia e como se quisesse deixar
claro pro “polícia” que aquela ideia não era dele: explica que foi sua mãe que
ficou revoltada e que ele não quer problema pro lado dele. O chefão da casa garante que
não haverá represálias. Eu garanto a ele que conheço a comunidade e
que saberei se elas existiram, ainda que a família não se disponha a fazer
novas denúncias.
Saio dali de nariz
empinado e marcando os passos com um salto que fazia um toc toc tão arrogante e
agressivo quanto eu mesma, olhando no olho de quem se atrevesse a me olhar. O
rapaz parecia mais confiante e saía tranquilo e honesto daquele lugar, com os
hematomas mais leves no seu corpo ainda dolorido. Para sua mãe, a violência
parecia ter sido neutralizada e pela primeira vez, pelo menos na atitude dela,
parecia que aquela dívida estava paga.
Esse é um dos meus preferidos.
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