sábado, 31 de março de 2018

O pequeno grande Hulk


-“Tia, mas não é justo! Não é justo, não é justo, não é justo!”
(Ela sabia que não era, mas conhecia elementos que ele desconhecia e precisava dizer/fazer algo que produzisse sentido para ele.)
- “Você sabe me dizer qual é a maior fraqueza do Hulk?”
(Ele entendeu que estava sendo associado a um de seus personagens favoritos, e pareceu gostar da comparação, a princípio...)


Naqueles tempos havia um rapazinho de grande inteligência, esta que, no entanto, não o salvava da ignorância de não saber por que estava ali e não onde queria, e não onde tinha certeza de que podia estar. Desde muito novo crescia naquele lugar e neste momento beirava sua pré-adolescência, como gostamos de nomear. As crescentes decepções se somavam à sua história de vida que não lhe passava irrefletida.

As promessas eram muitas. Elas não eram feitas por pessoas, já que estas não queriam se comprometer, mas partiam de sua observação sistemática dos processos pelos quais passava durante anos e das decisões tomadas nesse período: a alienação total da família era então seguida por visitas recebidas por esta, pontuais, periódicas e/ou frequentes e que finalmente se tornavam idas também pontuais, periódicas e/ou frequentes à casa daquela. Quando tudo parecia correr bem, quando tudo parecia finalmente se resolver para que ele enfim retornasse ao seio familiar, algo acontecia. Nas primeiras vezes, ele, confuso, perguntava o que havia ocorrido. Com o tempo ele sabia melhor do que nós quando tudo recomeçaria, e aquela história se tornaria um looping que parecia infinito...

Tentava, então, antecipar-se ao resultado e salvar aquela nova tentativa. Numa dessas ocasiões, tentou minorar a gravidade do problema que ainda nem era conhecido e quando percebeu seu insucesso, logo acusou: "Como é que a senhora, que terminou a primeira série, a segunda série e todas as séries que existem, não consegue resolver isso que eu, que sou uma criança, sei como resolver?". Sua frustração era gritante e sua inteligência impotente era o que mais doía, não sei ao certo se nele ou se em nós todos. 

Freud, lá em 1920, observou que seu neto, sendo deixado em seu berço enquanto os pais iam cuidar de seus afazeres, inventara uma brincadeira: dizia ele "fort" e "da" (que significa lá e aqui) enquanto jogava um carretel preso a uma linha para longe do seu campo de visão e logo o trazia de volta para si. Interpretou o pai da psicanálise que aquela brincadeira era a forma que o garoto tinha de reproduzir a situação angustiante da perda em que os pais somem de seu campo de visão e voltam à sua revelia, tornando-se ele mesmo o regulador dos momentos de sumiço e de retorno do carretel.

O nosso personagem também tentava controlar sua angústia, embora de outra forma. Raivas se acumulavam a cada frustração: raiva da mãe que não conseguia quebrar aquele ciclo interminável, raiva da juíza que não decidia logo para que ele saísse dali, raiva daquelas que cuidavam dele e que não conseguiam resolver seu problema, mesmo tendo estudado tanto e passado por "todas as séries que existem". Essa raiva tornava-se cada vez menos contida e a linguagem da violência, aprendida na pele desde cedo e permanecido na memória - especialmente motora - o fazia agir, talvez à sua revelia e à força de algo nele que ele também não controlava.

Tentávamos dar-lhe a via catártica do desabafo. Chorar e gritar que nada daquilo era justo era permitido, mas não era suficiente. Jamais seria.

A tarefa clínica de escuta e acolhimento precisa ir além da catarse, ainda que não dê a solução pragmática esperada. No ato analítico, aliás, nunca se dá a resposta desejada; esta só será disponibilizada por outras vias, a partir de outras funções. Tal tarefa exige técnica, mas parece exigir algo da ordem de uma sensibilidade algo intuitiva que deve reunir a técnica a uma ética de tudo acolher, à experiência do que se vive, do que se experimenta no mundo e, enfim, de tudo poder ser usado como instrumento e ferramenta de trabalho.

Agora ele se antecipava ainda mais: novamente acontecia uma daquelas coisas que dariam reset no jogo da sua vida, e então ele tinha um "ataque de fúria" e quebrava tudo à sua frente, na escola, na casa, na sala do médico ou da psicóloga. Talvez ansiasse pelo castigo de não ser autorizado a ir à casa que, mais uma vez, não seria ainda seu lar. Quiçá só quisesse dar vazão à sua raiva por um resultado que embora ainda não houvesse chegado, era líquido e certo. 

Era evidente que tais "ataques" diziam algo sobre sua dor e frustração, que ele afinal queria assumir o controle sobre tudo aquilo que lhe escapava, mas os efeitos da violência são sempre nefastos, especialmente para uma "criança de abrigo". Cada ato enfurecido produzia mais estigma sobre si, maior rejeição institucional e maior sentimento de falta de controle sobre os caminhos da sua vida. Ele, entre o orgulho de jamais se arrepender do que fizera e o medo da perda do amor combinado com um desejo de redenção, ia ali tentar justificar o ato e avaliar suas possibilidades de perdão.

Foi então que aquela pergunta lhe fora feita, a única que uma dada “intuição” clínica seria capaz de fazer diante daquela conjuntura. Sem soluções a dar e sem castigos a impor, questiona-se qual seria a maior fraqueza do Hulk. Ele, pensativo, responde em negativa, já que aquele herói, forte e destruidor, só guardaria para si as características da potência.

- "É que ele só vira o Hulk quando tem muita raiva e então não é mais o Bruce Banner que controla os próprios atos, mas é o Hulk que toma conta dele. Quando isso acontece, além de atingir o inimigo, ele acaba destruindo tudo em volta, podendo até machucar aqueles a quem ama e a si mesmo..."


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