“Ah,
tia, não quero pai viado não!”
Eis que ela, tão
vilipendiada e estigmatizada, tinha voz e opinião, mas não apenas isso: tinha
também seus preconceitos. Há quem possa querer lhe tirar até esse direito. Ora,
não é ela sujeito no mundo como nós todos? Não se constituiu ela num mundo
dado, prenhe de intolerâncias? No seu imaginário, líamos: não bastasse ser órfã
de mãe viva, abandonada durante toda sua vida, teria ela que se conformar com o
primeiro pai que aparecesse? E logo ela que aprendera com a mãe violentadora
que o amor bem podia figurar em abuso, mas esse amor aí... não, não, aí já era
demais!
Foi ali que entendemos
que o tempo do sujeito – especialmente do sujeito-criança – não encaixava no
tempo do mundo: nos prazos legais, nas metas de reinserção, nos dados de adoção
tardia. Porque não era o caso de não lhe dar o direito de manifestar seu
desconforto e até sua recusa discriminatória, mas sim o de lhe fazer pensar
sobre o que aquela presença desejosa de paternidade lhe fazia sentir, de lhe
fazer ponderar e ressignificar conceitos nodais na sua vida e, por que não?, nos
fazer repensar certos conceitos em nossa vida também. O que consiste, afinal,
em se fazer família? O que significa dar e receber amor?
Foram nove meses de
malabarismo. Simbólicos nove meses de manejo. Entre a criança, o futuro pai e,
a parte mais difícil, os operadores de direito que queriam cumprir os prazos
legais e carimbar o procedimento como concluído. A primeira, cheia de dúvidas,
ansiedades e inseguranças, perguntava, fantasiava, construía e destruía seus
castelos de areia pra construir outro e outro e mais outro. O futuro pai,
informado sobre cada pedaço de caminhada com sua desejada filha, era pura
ansiedade: queria dizer que não havia problemas, que ela havia de se
acostumar e de aprender a amá-lo como era, mas logo conseguiu entender que era possível
aproveitar aquele tempo para ajudá-la em seus castelos que buscavam um material
mais estável e seguro que aquela areia que sempre se desfazia no primeiro vento.
Com os últimos, foram incontáveis os relatórios descrevendo o andamento, os
procedimentos, o trabalho cuidadoso, e neles registrávamos o mantra: é preciso
respeitar o tempo da criança. Repetíamos aquilo em cada novo documento, até que esse mantra foi apropriado por eles e
virou, contra a sua própria natureza, ele mesmo um procedimento.
Com o tempo, a criança começou a
fazer visitas à casa do futuro pai, casa que em algum momento seria dela também. No
primeiro final de semana, perdeu a sandália no pé de goiabeira, deixando lá
parte de si e justificando a necessidade de voltar pra procurar. No próximo, os
bichos da casa – meio casa, meio sítio – eram seus bichos, a cama de visita era
sua cama e ele era seu pai – e ela sequer lembrava da qualificação que lhe
dava lá no início, aquela que introduz nosso texto.
Começamos, então, a ventilar
sua ida definitiva e como tinha de ser, a angústia crescia dentro de si: angústia de realizar o desejo de
finalmente ter uma família, angústia de enfim ter um amor tão diferente do que aprendera a
vivenciar ao longo de sua vida. Junto a isso, claro,
cresciam as resistências. Testes e mais testes. Propostas, negociações,
tentativas de salvaguarda e de garantias. Mantinhamos a conversa. Os operadores
continuavam questionando, em um vernáculo sempre mais complexo: “o que
é que está faltando?”. Insistíamos no mantra.
Não era ela também
sujeito?, repetimos. As ambivalências tomavam conta do seu ser
tão pequeno e no entanto tão carregado de histórias de violência e abandono. Será
possível um amor assim? E se não for real e duradouro, é possível voltar àquela vida que, nada
ideal, é a que eu conheço e vivo desde muito tempo? Era uma vontade ansiosa de
ir imediatamente, mas as malas nunca estavam prontas... havia alguma coisa que sempre faltava.
Queria a segurança de
ter pra onde voltar, se tudo desse errado. Queria mais ainda a segurança de que
jamais voltaria, porque tudo ia dar certo. Não
vai, tia? Olhos nos olhos, em meio a todas aquelas pactuações, em meio a
todos os questionamentos, restava ali um pedido de que tudo daria certo, até
porque tudo sempre já deu muito errado, sua vida inteira.
É preciso respeitar o
tempo da criança. O tempo do sujeito, entretanto, não tem tempo – não esse
tempo cronológico do relógio da parede que anuncia o passar dos minutos, não
aquele do calendário que passa a cada folha arrancada – o tempo do sujeito só
acontece, em outra lógica... em outro tempo. Era tempo, então, de deixar o
tempo acontecer. Em nove meses, simbolicamente, ela renascia filha do pai viado
que, naquele momento, era apenas pai.
Pai de amor, pai de recomeço. Pai que lhe ensinaria que o amor é diverso e não violento.