quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Como se atreve?

Um novo bebê chega à grande casa de crianças. Seu nome, escolhido às pressas e à revelia daquela que o pariu, vem junto do nome dela, mais familiar do que se gostaria. Ser mãe, dizem uns, é uma dádiva. Já outros dizem que é um talento. Fala-se até de perfil, como se fosse uma vaga de emprego - o mais importante dentre os que há na vida, dizem ainda.
Ela, usuária de drogas, certamente não tinha o perfil, e aqui essas pessoas estão erradas por princípio, até que se prove o contrário, se for possível fazê-lo. A criança, mal nascida, chega já com uma história obscura que denunciava aquela que se propunha a tornar-se mãe sem poder sê-lo.
"A genitora, viciada em crack, queria vender o filho ainda no ventre para comprar drogas". A futura mãe, compradora do futuro filho, até então aparentemente não questionava tal imoralidade. A futura mãe acompanhava todo o pré-natal e pagava o que tivesse que ser pago para finalmente ter seu filho. Ela tinha certeza de que tinha o talento e que merecia essa dádiva que não cabia à outra.
A criança nasce e a genitora declara ser mãe, desfazendo qualquer acordo. Não se sabe se pelo cheiro, se pelo toque, se pelo olhar ou se sempre fora uma estratégia dela que queria sair da rua, que queria abrigo e cuidado para se preparar para o novo momento da sua vida. Bem sabia ela que não tinha o tal perfil, talvez, mas fora denunciada em seu intuito de vender seu bebê: drogada, viciada, egoísta... como ela se atrevia em desejar ser mãe, esta figura que é toda entrega, cuidado e amor pro outro?
A genitora, que agora (ou sempre?) queria ser mãe, vociferava, ameaçava, falava na linguagem da rua, sua velha conhecida. Aquele linguajar e aquele tom, no entanto, só conseguiam condenar seu projeto de se mostrar potencialmente mãe: era o nono filho que lhe roubavam, gritava ela. Era o nono bebê que ela tentava vender, dizia a vizinhança da quase futura mãe.
Sua luta era vã. Não seria ainda mãe. Não naquele momento, não daquela forma. Ela prometera, no entanto, que iria parir quantos bebês fossem necessários até que pelo menos um pudesse ser seu e que ela finalmente pudesse tornar-se mãe e tudo o mais que aquilo pudesse significar.

terça-feira, 5 de setembro de 2017

Além dos limites do sucesso

Um "menor infrator" foi assassinado.
Um adolescente envolvido com roubo e com disputas entre gangues foi morto a tiros pela gangue inimiga.
O adolescente de 16 anos, cujos pais estavam presos, foi alvejado no meio da sua comunidade, pelo grupo com quem nutria inimizades.
Aquele rapaz que sonhava alto, carinhoso que só ele, e que planejava deixar aquela vida tão logo conseguisse liquidar suas dívidas, foi morto numa tarde de agosto.
Havia dívidas em dinheiro, dívidas em drogas, dívidas em vidas e desafetos.
Era aquele menino que chegava todo dia com um sorriso largo, sempre otimista, acreditando que haveria um amanhã diferente.
Era aquele que sempre alertava os novatos para que tivessem cuidado, porque aquela moça ali ia entrar na cabeça deles; era aquele, no entanto, que tinha conversa pra todo dia, no fundo desejando que a moça entrasse na sua cabeça e ajudasse a remontar as peças da sua vida.
Foi aquele jovem, envolvido com o crime, que morreu prematuramente porque quis ou mereceu (?), porque sua esperança não conseguiu superar a realidade que lhe batia a porta: a realidade travestida de vingança, a realidade vestida dela mesma.

Foi esse adolescente que mostrou a face dura da morte: morte da esperança, morte da vontade profundamente verdadeira porém impotente, uma morte prematura da vitalidade e da mudança.
Foi ele também que mostrou a vida: a vida da alegria, a vida de saber que, não tendo ninguém, era possível não estar só.
Pois esse menino fez uma demanda desesperada, aparentemente tão despropositada, que poderia não ter sido atendida. Perguntou, meio assustado, quase pueril, se ninguém ali podia acompanhá-lo a um depoimento na delegacia de proteção à criança e ao adolescente:

Na delegacia não era um depoimento.
Não havia crime - pelo menos não crime recente.
Na delegacia de proteção havia vingança e violência institucional. O que haveria, aliás, era "pau". Não o houve porque ele estava acompanhado.
A moça de crachá, sua acompanhante, pequena e ingênua, esperava a hora dele depor e sequer sentiu o adensamento progressivo dos humores diante da impossibilidade da violência física que sua presença produzia.
O menino lhe sussurrava aos ouvidos: "se a senhora não estivesse aqui, eles iam me pegar... aquele agente ali não gosta de mim e tinha prometido que ia me pegar pra me bater..."

Querendo ainda acreditar na motivação institucional daquele chamado, os dois esperavam quase pacientemente - ela mais, ele menos. O delegado (ou era o agente), menos ainda.
Esta figura de autoridade - inominável, deveras - finalmente fez seu discurso: olhou pra moça com o crachá, tão pequena e nada ameaçadora e começou a vociferar jargões daqueles vomitados na mídia: "uma menina tão bonita, cuidando de marginal", "direitos humanos deviam ser pra gente direita, não pra esse vagabundo", etc.

O menino, tão doce e carinhoso com a moça que tentava cuidar dele, quis também cuidar dela,  e ameaçava explodir.
Ela pegou então na sua mão e o lembrou com um olhar do que haviam conversado, sobre o cuidado com os atos, sobre decidir como agir e sobre não reagir.
Ele respira fundo e se contém.

O agente continuava a abusar da sua autoridade.
Mais discurso de ódio e a pergunta, direcionada a ela: "como você consegue lidar com esses animais?"
O rapaz não suporta: "aqui a gente é tratado como animal e vira bicho; com elas, a gente é tratado com respeito e lá a gente vira gente".
Ela - que também tem o direito de se orgulhar - sorriu triunfante.
O agente da lei às avessas não podia suportar aquela resposta e assume seu lugar animalesco, confessando o projeto frustrado de violência.

Em toda essa história e antes de ir, ela também falou. Depois de voltar, ela ainda denunciou.
Mas isso não foi o mais importante. Dali por diante, havia finalmente alguém por ele, e isso alimentava a chama da sua esperança.
O final não é feliz, já sabemos: aquele adolescente, que não estava mais só no mundo e acreditava num futuro diferente, não conseguiu deixar sua vida no passado e foi atropelado por ela.

A moça sabe que não está ali para salvar vidas, já que estas protagonizam sua própria história.
Aquela moça, de crachá e registro profissional, chorou a morte do rapaz e precisou fazer luto.
A mulher, psicóloga, queria que tivesse sido diferente, mas aprendeu muito com o menino infrator.
Aprendeu com ele a acreditar e ensinou um pouco de volta, fazendo-o se sentir menos órfão de fé.
Apesar disso tudo, ele foi assassinado.
... mas ela ainda insiste em acreditar que esse foi um caso de sucesso.





domingo, 27 de agosto de 2017

Pelo dia do psicólogo

Sempre fui pouco afeita ao compartilhamento de homenagens, no dia dos pais, das mães, dos avós, dos namorados, e de tantas outras datas comemorativas que temos hoje. A despeito disso, sempre compreendi a importância política de se levantar um monumento tanto do que representa a dor que nunca mais queremos voltar a sentir (no caso de datas como o dia da mulher, instaurada no aniversário da dor de tantas mulheres em luta por direitos os quais hoje gozamos) quanto de instaurar uma data para lembrar daqueles que, dignos de respeito hodiernamente, devem receber as homenagens devidas em face de um dia que lhes represente a luta e a tarefa cotidiana.
Isto posto - e sendo esse um blog sobre a escuta e a leitura de mundo de uma psicóloga diante das histórias e das vidas que lhe atravessam a própria vida - achei importante marcar a data e nos parabenizar, psicólogos, pelo nosso dia. 
A nossa luta, por valorização e respeito a uma profissão ainda tão controversa em entendimentos fantasiosos e preconceituosos, está muitas vezes imersa em práticas incompreendidas, dado seu poder de produzir transformações a partir da mediação da palavra que sai pela fala, pelo silêncio, pelos comportamentos e que se exala através do corpo.
Quem é psicólogo, como eu, deve ter recebido hoje dezenas de mensagens, algumas que reiteram esses sentidos dos quais muitos queremos nos livrar e outras que falam a nós e nos emocionam. Copio adiante uma destas últimas, atribuída ao psicólogo Alexandre Coimbra Amaral:

Feliz dia dos insensatos, inquietos, angustiados, criativos. Feliz dia dos silenciosos, dos choros contidos, dos olhares secos e nós na garganta. Feliz dia da palavra, do corpo expresso, da vida urgente, da infelicidade que quer arder no passado e deixar de ser presente. Feliz dia das ambivalências, das incoerências, dos encontros com nossos avessos. Feliz dia da conversa estranha que não é conversa de amigo, que é um tipo de amor e que se paga, que transforma e pode libertar. Feliz dia da família, do casal, do grupo, da comunidade, do hospital, da escola, da empresa e de qualquer lugar do mundo. Feliz dia do divã, dos olhos nos olhos, da distância ótima e do abraço necessário. Feliz dia do psicanalista, do behaviorista, do cognitivista, do sistêmico, do humanista, do psicodramatista. Feliz dia daquele que não tem linha, porque não quer se ver amarrado. Feliz dia do segredo ético, da beleza que nasce da confiança e tem na entrega o seu maior legado.

Feliz dia das pessoas que buscam ampliar as perguntas sobre suas existências, e que fazem de todos nós, psicólogos, realizados por podermos continuar existindo. Nosso ofício é uma ação política de empoderamento das vozes que se emudeceram, dos cantos das almas enrouquecidas. A felicidade que precisamos celebrar, hoje, é deste encontro poder acontecer, porque ele é um tanto da beleza existente em nossas vidas.

Aos que insistem em suas perguntas aparentemente sem sentido, meus parabéns. Aos que acolhem as dúvidas de tantos, minhas colegas e meus colegas tão queridos e admiráveis, minha reverência eterna.

Sigamos, todos, na direção da realização daquilo que ainda não pode ser nomeado, expresso, vivido. Juntos, construímos um mundo (infelizmente) (ainda) estranho, de gente diferente que tem todo o direito de existir, ser vista e aplaudida em todas as suas cores.

Feliz Dia do Psicólogo!

domingo, 11 de junho de 2017

Entre duas vidas

A angústia de precisar ser aquele que não gostaria de ser, o medo de nunca conseguir ser aquele que sonha em se tornar. Uma pertinência que produz identidade reiterando a miséria e o risco versus uma perspectiva de superação que parece fazer abandonar a história e tudo o que lhe faz parte, a família, a comunidade, que parece trair o que lhe constitui enquanto pessoa. Sim, até aqui tudo soa muito abstrato e talvez muitos consigam recortar e conjugar esses sentidos em suas próprias mazelas, em seus próprios conflitos, mas eu falo aqui especificamente de algumas vidas, geralmente negras e pobres, comumente periféricas e certamente marginais.
Nasceu na periferia de uma urbe qualquer, cresceu meio só, meio solto, meio criado pelo mundo, pela rua. O pai policial, um filho em cada canto, pensões recortadas do seu salário, ausência recorrente.  A mãe é uma qualquer (porque não tem importância na vida do homem que a engravidou, mas também porque é assim tratada por dar a si mesma em busca de reconhecimento de um homem qualquer). Já os avós, eles são os personagens idealizados, talvez porque distantes temporalmente, talvez porque distanciados geracionalmente do caos da urbanidade e da violência que só crescem, mas especialmente por terem conseguido garantir a ele um aspecto de segurança onde só havia instabilidade.
E ele vive preso na dualidade: entre o ódio de todos os policiais tão truculentos e desrespeitosos e o desejo de se tornar um, poderoso e justo; entre a vida loka das ruas que ajudaram a criá-lo e o sonho de ser maior, vivendo outra vida, em outra comunidade. O garoto inteligente, perspicaz, captura os intentos institucionais: desafia e pede ajuda, acusa e faz apelos desesperados e disfarçados de raiva, uma raiva contida que não se contém estrategicamente para esconder a dor. Mas não se atreva a apontar sua inteligência, pois soa como uma acusação, não arrisque mencionar que ele pode ter futuro, porque ele recebe como uma ameaça. Ameaça de ser mais do que lhe é permitido? Ameaça talvez de trair seu eu, tão marcado com o estigma marginal?
Usuário de crack, se declarava viciado e pedia ajuda para largar, já que as primeiras vítimas de suas recaídas eram sempre seus avós, seus redentores. Eram eles as primeiras vítimas dos roubos porque essa coisa de arriscar a vida e o futuro no crime não era pra ele, mas essa vida de ir bem na escola, de ser um prodígio, por outro lado, era muito assustadora, e era ela, a fé cheia de cobrança que lhe depositavam que ele parecia não sustentar e que acabava jogando ele de volta na pedra. Ele apelava por algum auxílio, mas o que pedia mesmo era que ninguém o acusasse com aquelas perspectivas que projetavam seus grandes sonhos pecaminosos.
Ele não conseguia sair do seu paradoxo. Vivia a dor de reiterar seu eu periférico, viciado, e permanecia preso àquela vida; por outro lado a esperança de acreditar que era diferente dos outros organizava suas ideias, vez ou outra, fazia-no desafiar o destino e ir em frente, mas ia se equilibrando na corda bamba da vida que não merecia (ou que não lhe cabia), e o chão – a pedra – o chamava mais forte, e assim ele caía. Era por amor aos avós que tentava sair, era por identidade à mãe e até por uma espécie de respeito também àqueles que não poderia ir nunca tão longe. Era por uma idealização às avessas com o pai que queria se tornar um bom policial mas mesmo sem querer, de alguma forma ele sempre seria filho da mãe e do pai, e o neto que nunca mereceria o amor dos avós, sempre mártires, como o são os bons heróis de qualquer história. Ou talvez fosse ele mesmo o mártir (anti) herói.

domingo, 7 de maio de 2017

Ser menina ou ser mulher?

Fui instada a rememorar histórias doídas, aquelas nas quais atravessa uma agonia que parece nos dizer que não há para elas solução ou cura. Pensar sobre violências que podem ser lançadas sobre qualquer um, mas que geralmente atingem aquelas mais vulneráveis, aquelas que estão tão desprotegidas porque vitimadas por quem deveria garantir-lhes abrigo e proteção. Não, não são só meninas, mas falemos aqui delas, porque são elas o alvo preferido, são elas as que mais sofrem, quando não a violência explícita, a violência cultural de serem responsáveis pela garantia da harmonia de todo e qualquer conflito. Que mulheres elas se tornarão? Que mulheres somos nós que já chegamos até aqui?
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Devia contar com uns 7 anos, talvez 8, não mais do que 9. As marcas da violência eram-lhe visíveis, e isso já fazia com que ela atraísse uma atenção inadvertida, incompreensível para ela. Apesar da dor que sentia, a violência não era sentida como tal, mas compreendida como amor, afinal, ela era a mulher escolhida pelo pai. Por absurdo que seja – e sentíamos uma repulsa automática pela história – cumpria-se ali uma fantasia edípica e ela só queria convencer a todos que estava tudo bem e que desejava voltar à companhia do seu homem, seu agressor, seu pai. A repulsa, entretanto, trazia consigo um “quê” de encantamento, de fantástico, e diversos profissionais – mal (in)formados – insistiam em querer ouvir sua versão. Ela contava e recontava, como uma história de amor, como que para acelerar sua saída dali e seu retorno ao lar, mas a cada repetição, os olhares abismados e encolerizados davam-lhe o sinal de que talvez devesse guardar consigo aquele conto trágico, daqueles que só quem sente pode compreender. Entre o pedido de segredo feito pelo amado pai, a revelação ingênua como forma de libertação e retorno nunca conquistados, e os indicativos de que quanto mais falasse, menos conseguiria o seu intento, ela finalmente calou. Calou-se completamente e o tanto que ela guardava naquele pequeno coração era imensurável. “Adultecida” precocemente, logo entendeu que aquela luta era sua, e que ninguém era capaz de falar à sua dor e à sua confusão. Tão menina e tão mulher, já sabia preservar os outros em detrimento de si mesma, já sabia preservar a si mesma em detrimento dos seus sentimentos, em prejuízo de sua compreensão de si mesma e de seu lugar no mundo.
*
Aqui eram duas, irmãs, sempre juntas, na lembrança e na insegurança do presente e do futuro. Agora a vilã do conto era a mãe, que lhes expunha a tantos homens maus, e que era assim reconhecida pelas filhas e por todos os que conheciam a história. Havia à época da violência também um irmão. Este conseguiu fugir, denunciar e encontrar alguém que o ouvisse e o acolhesse, escapando do destino de institucionalização que coube a elas. Quando a irmã pequena insistia em esquecer da dor que sentira e sonhava em voltar para casa, para uma mãe amorosa que não existia, era a mais velha que lhe dizia: “já esqueceu do que ela fazia com a gente?” e se recusava a falar daquilo de novo, a caçula já indicando estar ciente de que o retorno não era uma saída possível. Essas duas meninas eram “o terror” da instituição: estigmatizadas por sua hipersexualidade, eram acusadas de abusar das outras crianças. Que nome terrível a se dar a uma compulsão à repetição que encobria tamanho sofrimento! Certamente era uma tentativa de controlar o sentimento, uma necessidade inexplicável de sentir o toque e o prazer sexual, mas dessa vez na sua própria hora, com aqueles a quem amavam e compartilhavam uma vida. Será que eu sirvo pra mais alguma coisa? Parecia ser essa a pergunta que lhes guiava quando, querendo conquistar qualquer coisa, escolhiam uma figura masculina e tentavam consegui-lo por uma espécie de sedução que mais constrangia a eles e reforçava nelas seu (não) lugar.
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Por fim, mais três irmãs. E aqui o malfeitor volta a ser o pai, confundindo violência com carinho. Abusivo com elas e com a mãe delas, parecia tomá-las todas como objetos que possuía e com elas faria o que bem entendesse. Perspicaz, no entanto, fazia o personagem do pai, do marido e do vizinho perfeito: estava acima de qualquer suspeita em um mundo em que a palavra da mulher e da criança carece ainda de legitimidade. A esposa denunciava suas violências como podia e para quem a ouvisse e lhe passasse um pouquinho de confiança. As crianças também o denunciavam com seus terrores noturnos e suas masturbações compulsivas que lhes afastavam das brincadeiras coletivas. Sendo três e muito novas, cada uma respondia ao seu modo. A mais velha das três, tinha lá para os seus 7 anos, rejeitava receber o pai nas visitas, colando na mãe quando ela ia junto, chorando e se recusando a sair quando não fosse esse o caso. A do meio, com 5 ou 6 anos, ganhou logo a fama de espevitada (e mais uma vez o estigma fica marcado) pois não podia ver aquele homem que logo pulava no seu colo. A mais nova, devia contar com três anos, até então não falava e de tanto que se isolava, não era jamais vista a brincar com os outros. As duas mais velhas, aliás, apesar de já falarem, desenvolveram uma gagueira, sinal do silêncio imposto sob ameaça. Com a conversação prejudicada, encontravam alternativas para comunicar a violência, mas quem as acolheria, se as provas não eram “claras e contundentes”? E de que outras provas precisávamos, afinal?
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Em todas elas, uma história que não se pode revelar, um silêncio e uma angústia a se (e de se) guardar, um tempo que não sai nunca do lugar, tempo estagnado, preso entre uma infância não vivida e uma vida adulta iniciada cedo e que, no entanto, não pode ser começada nunca. Meninas e mulheres, em que ponto de sua história será possível se libertar?

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Lugar no mundo

Todos os dias, para todos nós, ou para quase todos, há um alívio em saber que temos para onde voltar. Saber que há um espaço, nosso, com pessoas, também nossas, para nos acolher. Para os que vivemos confortavelmente em nossas casas, que dormimos em camas macias, anunciadas em propagandas nos intervalos das novelas, às quais assistimos envoltos em lençóis de sabe-se lá quantos fios, parece inconcebível e exasperador imaginar uma noite dormida ao relento, sem conforto, sem assepsia, sem segurança, sem posse ou pertencimento. Realmente não deve ser a melhor das experiências, mas talvez haja piores, ou talvez a questão não possa ser colocada nesses termos. A despeito dessa conclusão supostamente óbvia, as pessoas insistem em repetir que o morador de rua gosta de estar ali, que lá prefere estar, como se a ele fosse oferecido, como contraponto às ruas, a mesma experiência a qual desfrutamos em nosso lar. Impossível colocar as coisas nesses termos: estar ou não estar na rua, como se se tratasse de uma simples escolha entre uma vida segura e confortável e a liberdade das ruas da cidade. Certamente é bem mais fácil denegar uma realidade que se passa embaixo dos nossos narizes, previne-nos de um mal-estar desnecessário. Talvez seja mesmo melhor que essas pessoas e suas histórias permaneçam invisíveis...
Foi ele, no entanto, um senhor simpático, falante e geralmente bem-humorado, um dos sujeitos que me arrancou da minha ignorância auto provocada. Com seu discurso organizado e eloquente, falava em um vernáculo impecável, superando todas as expectativas (preconceituosas, diga-se de passagem). Em um primeiro encontro, desconfia-se da sua condição de morador de rua, já que esta pode ser capturada em suas roupas, pela visão de seus dentes (ou pela falta deles), diante do cheiro forte logo no início da manhã, antes do banho rotineiro no serviço. Em um segundo olhar, ou em uma primeira escuta, a impressão é completamente outra: leitor voraz, com grande capacidade de análise das conjunturas sociais e políticas, sabe muito sobre diversos assuntos e questões e a primeira coisa que qualquer um pensa (ou pensaria) é: “o que ele faz na rua?”.
Em sua história, uma mãe abusiva, um pai que abandona a família, irmãos com quem eventualmente perde contato. Sozinho na vida, mostra no entanto algumas dificuldades de elaborar sua própria história e por vezes faz crer que as coisas não devem ter se processado conforme sua narrativa alega ter sido. Seja como for, relata se envolver nos estudos e se tornar professor, sem ajuda de quem quer que seja, professor de adolescentes: “ah, prefiro lidar com as pessoas da rua que com adolescentes de novo!...”. Dizem que surtou em sala aula, supõe-se que saiu mundo afora, perambulando, sem referências pessoais e sociais e que não conseguiu mais retornar à vida anteriormente escolhida. O que são essas referências, no entanto? Tratam-se, necessariamente, de uma mãe ou de um irmão de sangue? Ou talvez uma esposa ou filhos?
Frequentando diariamente o serviço de apoio à população de rua, nunca solicitou acolhimento em albergue (sobre estes, aliás, valeria discorrer com mais detalhes em outro momento). Quando muito, pede seus documentos ali guardados e preservados a fim de resolver algum assunto, já que não lhe falta autonomia ou conhecimento dos aparelhos burocráticos para fazê-lo. Por outro lado, geralmente demanda escuta, que assim eu chamo, mas que ele prefere chamar (não sem razão) de conversa. Não sem razão porque o que ele solicita ali parece ser a possibilidade de conversar conversas outras, com aqueles que, tal qual ele próprio, também têm leitura e estudo. Apesar dessa necessidade, domina com certa destreza a linguagem da rua, tomando-a como seu lar, não pelo seu conforto, obviamente, mas por ter conseguido achar, ali, no lugar supostamente mais improvável, o seu lugar. Tomado como uma espécie de pai para algumas daquelas pessoas que também vivem em situação de rua, torna-se o refúgio delas quando querem dar um tempo do uso abusivo da droga, e ganha em retorno sua proteção de bando (em outras palavras, seu amor, e o reconhecimento do seu valor no mundo). Entre uma vida recapitulada em abandono e desamor, ainda que supostamente estruturada, e outra vivida enquanto proteção mútua e reconhecimento, mesmo que no risco da saúde e do dia seguinte, habita o limbo dessas duas linguagens, domina-as ambas, e vive duas realidades.
Sempre com uma mochila nas costas – onde se podem encontrar livros, revistas, roupas, e toda a vida que consegue carregar consigo – ele declara estar ciente de que a idade está passando e de que está se tornando idoso. Reflete e questiona se deveria pedir uma vaga em albergue, ou se talvez pudesse solicitar um auxílio moradia pra alugar um cantinho para si. Ele entende, no entanto, as implicações disso: entre viver na rua - onde encontrou uma família e um lugar, onde conseguiu se reposicionar enquanto sujeito - e o retorno para uma vida comum, confortável, porém a princípio solitária e desamparada subjetiva e afetivamente, sente-se assoberbado com os muitos receios que lhe rondam os pensamentos e as fantasias. Nessa vida comum, qual seria sua função, seu lugar?

Afinal, de que adianta ter um canto e uma promessa de conforto e segurança se sozinho não puder dar sustento ao sujeito que pôde finalmente emergir nas ruas?

terça-feira, 7 de março de 2017

... sobre negritude

Eram duas irmãs negras. Eram meninas negras que sonhavam com uma mãe loira e linda, como se um adjetivo trouxesse o outro a tiracolo. Fantasiavam essa mãe até quase aluciná-la, como algumas meninas e mulheres sonham com um príncipe encantado em um cavalo branco. Por óbvio, ela não seria apenas loira e linda, mas uma mãe boa, que lhes daria presentes, lhes faria comidas deliciosas e atenderia a todos os seus pedidos.
Em um esforço de suspender uma primeira interpretação para não incorrer no risco de aceitar prontamente uma análise muito superficial, comecei a supor algumas possibilidades. Pensei que talvez essa mulher fantasiada fosse um contraponto da mãe real, negra, violenta, e que as explorava sexualmente. Achei ainda que poderia ser uma promessa de mãe a qual elas tiveram acesso, e de fato elas haviam tido uma ou duas madrinhas afetivas loiras, ricas e lindas, mas que por algum motivo, tinham desistido de seu apadrinhamento[1]. Questionei-me até que ponto não eram assim as mulheres admiradas da televisão, das novelas, dos comerciais e das revistas.
Durante o período de mais de três anos em que (con)vivi com elas, me chamava a atenção como elas haviam absorvido, em sua construção de identidade, um desprezo por si próprias. Não, elas não se automutilavam, elas não eram depressivas e tampouco suicidas. Eram meninas plenas de vida, de questões e de sonhos, porém elas simplesmente gostavam e admiravam tudo que não era seu, tudo o que não se assemelhava a si, que não lhes guardava identidade. Bonito era o cabelo loiro e liso da tia, e não o seu, que precisava se manter violentamente preso e oleado. Delicada era a pele branca da outra criança, que corava ao ar livre, e não a sua, escura, retinta, que se acizentava após um dia de diversão ao sol. O nariz, a boca, até os pés... do outro (aqui ganhando o sentido real do diferente) era sempre mais bonito.
As tias, muitas vezes também negras, sabiam que deveriam "trabalhar" essas questões com as crianças, ouviam dizer que eram justamente tais questões que implicariam na constituição subjetiva da criança e da mulher adulta que elas se tornariam. Entendiam que era preciso desconstruir qualquer autoimagem negativa que tivessem, mas essas mesmas tias, muitas vezes também negras, costumavam achar o cabelo liso e loiro das mulheres da televisão mais bonitos que o delas e entendiam que deveriam prender os cabelos crespos violentamente e mantê-los oleados, os delas mesmas e os das crianças.
As tias, muitas vezes também negras, orientavam e explicavam – certas de que “trabalhavam” tais questões – àquelas meninas negras, que elas precisavam saber se apresentar para conquistar seu espaço, ainda que isso implicasse, em um nível subliminar, que elas devessem vestir uma espécie de disfarce que as fizesse passar por meninas brancas e comportadas, como se, mais uma vez, um adjetivo carregasse o outro a tiracolo.
Mais do que as outras meninas, elas precisavam saber se comportar, especialmente para não atrair olhares e para não assanhar os cabelos tão violentamente presos e oleados. Mais do que as outras meninas, elas deveriam se comportar perante os meninos, para não expor qualquer tipo de sexualização precoce (no seu caso, inevitável pela violencia sofrida anteriormente e que as levara ali).
Apesar de tudo isso, era preciso não exagerar e não deixá-las acreditar que elas seriam um dia loiras e lindas, este último adjetivo, lembremos, sempre colado ao primeiro. Como se tentassem preservá-las da realidade cruel, violentava-se acarinhando, penteando e, finalmente, relaxando e escovando seus cabelos. Como se tentassem preservá-las da realidade cruel, deixavam claro, com meias palavras amorosas e cafunés, que aquelas meninas, talvez tal qual elas mesmas, precisavam entender os limites do seu lugar no mundo.
Presas no paradoxo entre o seu ideal e o seu (im)possível, só podia lhes sobrar a fantasia da mãe loira e linda que, boa e generosa, tomava-as para si, tornando-as quiçá um pouco menos negras, permitindo-lhes amarem-se a si próprias um pouquinho mais.




[1] Sobre programa de apadrinhamento: www.cnj.jus.br

domingo, 22 de janeiro de 2017

O que é uma mãe?

Era uma mãe em permanente estado de angústia. Antes, por ver seu filho enveredar por um caminho perigoso, infracional. Depois, por vê-lo magoado consigo, negando-se a manter contato com ela e a entender sua decisão. A atitude do filho não era o que mais doía, no entanto. As outras mães, vizinhas, amigas e também aquelas que participavam com ela dos grupos de família propostos pelo serviço onde os jovens iam responder pelos atos cometidos, quase em uníssono, apontavam-lhe o dedo: “Que mãe é essa, capaz de denunciar o próprio filho?!?”. Lavada em lágrimas, ela tentava responder e justificar: “O que mais eu poderia ter feito? Será que eu deveria tê-lo deixado seguir por aquele caminho? O que seria dele hoje?”
Todo mês era assim, ela ia para o grupo, expunha sua história e se tornava o foco do debate. A temática planejada para aquela atividade se perdia; todas queriam opinar, julgar, condenar... “Que mãe é essa?!?”. Ela permanecia indo religiosamente, não faltava nunca, como se fora uma autopunição, como se precisasse daquilo para sentir-se castigada por ter chamado a polícia para prender o filho. Ela mesma não tinha qualquer convicção da decisão tomada e parecia ansiar por aquele momento, como se necessitasse ser condenada junto com ele.
Diante daquilo, a única medida era resgatá-la do grupo, tirá-la dali e trazê-la para os atendimentos individuais. Nestes, as mesmas lamentações: “O que mais eu poderia ter feito?”. Clamava por uma resposta ou talvez quisesse que também a profissional desse-lhe sua dose de penitência. Presa em um ciclo que ia desde o questionamento de um modelo ideal de mãe ao comportamento infracional do filho, repassando infinitamente pelos comentários recebidos, ela não conseguia sair do lugar e era impossível elaborar toda aquela dor e toda aquela dúvida: “até os policiais me olharam estranho – dizia ela – quando entenderam que era meu filho que eles deveriam levar”. Não sei até hoje se esses olhares doíam mais ou menos que o olhar do filho, suplicante, que pedia para ela não deixar os policiais o levarem, prometendo mudar.
Já ele, o filho, passou uma noite detido na delegacia. Noite decisiva, contava ele: “Como ela foi capaz de chamar os polícia e me deixar ser levado por eles?”. O sentimento de desamparo sentido naquela noite o assombrava e sustentava sua nova postura de inimigo da mãe, logo ele que a amava tanto, que a venerava. Depois passou pelas audiências de onde saiu a decisão de que deveria cumprir medida socioeducativa por seis meses. Ele estava inconformado, era como se ela tivesse tornado público um problema que eles podiam resolver na privacidade familiar, como se não concernisse a todas aquelas instituições entrar no jogo.
Diferente dos outros, ele não tinha rodado por vacilo. A polícia não o pegou em flagrante, mas ele havia sofrido uma traição por parte da pessoa em quem ele mais confiava. O sentimento parecia ser o de uma mágoa profunda pela traição, por ter se visto sem poder se defender, por ter sido pego de guarda baixa. Aquilo lhe parecia imperdoável. A relação anterior e o sentimento que nutria por ela, no entanto, estava ali latente e ele, mais rapidamente que ela, ia conseguindo elaborar tudo aquilo: “eu fiz muita besteira, maltratei muito ela, fiz ela sofrer” e bem aos poucos, ia concluindo ter merecido a medida tomada pela mãe.
Quase disfarçadamente, foi se reaproximando dela. Não fez as pazes explicitamente, não fez nenhum discurso bonito nem disse que a perdoava. Esses roteiros emocionantes cabem no cinema, nas novelas, mas na vida as palavras às vezes são excesso. Como o filho pródigo, ele vai retornando ao lar, ao colo que sempre fora seu. Ela, do seu lugar de mãe – dessa vez, uma daquelas mães que povoam nosso imaginário – não questionou, não comentou nada, só aceitou seu retorno e foi recebendo o filho de volta ao seio familiar, aquele filho de antes.
Cada um por sua vez, nos grupos e nos atendimentos individuais, foi mostrando mais leveza. A angústia dela foi se dissipando ao mesmo tempo em que a mágoa dele não encontrava mais seu alvo. As lágrimas dela foram ressignificadas e passou a chorar emocionada. Sua dúvida não existia mais, pois agora ela estava orgulhosa da mãe que fora e da difícil decisão que tomara: “Ah, se todas as mães tivessem a coragem e a atitude que eu tive!”. Ele, também orgulhoso, sente até gratidão por ela e com a namorada/esposa grávida, quer ser o pai que não teve e cujo papel afirma ter sido assumido por sua mãe que, grandiosa, foi pai, foi mãe e foi amiga.

Às vezes encontramos finais felizes. Como todos eles, esse aqui não é diferente e oculta todo um futuro que continuou se processando, um futuro que certamente contou com novos conflitos, outras dores e problemas que não mais nos alcançaram. O mérito? Se meu, se deles ou se das contingências da vida, vai saber... Só é bom lembrar dessas histórias e acreditar que a gente não está a toa por aqui.

domingo, 1 de janeiro de 2017

Há que se fazer o corte

Nascido de um corte longitudinal, não de um que se faz na barriga da mãe que carrega o bebê, mas de um feito nele mesmo. Tão menino, acorda de seus longos dias moribundos, vítima de uma violência que, literalmente, o corta da vida familiar. Daí pra frente, esse se tornou seu significante, o corte. A faca, seu instrumento de defesa (ou quaisquer outros objetos cortantes). Havia aqueles – a maioria dos adultos, cuidadores, guardiões – que acreditavam que o então rapaz poderia, de fato, usar o instrumento para reproduzir neles o que houve consigo, e ter cuidado é sempre bom, especialmente se para tê-lo, desenvolve-se alguma sensibilidade. Não era o caso, infelizmente. Ele resistia aos novos cortes ameaçando fazê-los ele mesmo com o instrumento que estivesse disponível. E quantos cortes lhe rondavam, quantos cortes nos rondam sempre...
Criado institucionalmente, seu corte trouxe consigo um irmão, este que, recém nascido, foi removido da família e colado a ele a fim de ser preservado de uma violência similar. Este último, literalmente criado pela instituição, nunca entendeu sua história, encoberta pelo tabu do corte que separava toda a vida anterior desta e, sem nunca entender ter sido salvo pelo corte físico do irmão, nunca o perdoara por ter sido alienado ao direito de ter um pai e uma mãe. A cegueira de quem não viveu a história e daqueles que jamais conseguiriam sequer se aproximar da dor que ela trazia, fez com que ligassem um ao outro, sem de fato costurar suas histórias, sem nunca permitir que eles entendessem como seus laços ultrapassavam o sangue e o DNA. O mais velho, carregando suas reminiscências e sempre pronto a defendê-los de um novo corte, impedia qualquer mudança, qualquer possibilidade de novos rompimentos, ao tempo em que, inadvertidamente, acabava às vezes produzindo-os: transferências, separações e finalmente, a desvinculação com seu resto de família, o irmão mais novo.
Houve diversas tentativas: brasileiros e estrangeiros, desejosos de ter filhos se aproximavam, prometiam uma nova vida, mas o primeiro garoto, marcado pelo seu significante, usava seu instrumento sempre que a coisa ficava muito séria. Os pretendentes recuavam, é claro: quem vai condenar os futuros pais, submersos em sua fantasia de família feliz, de não conseguirem lidar com a ameaça do corte real? O corte simbólico, no entanto, aquele significante que mobilizava o rapaz, incompreendido e incontrolável, só queria ele mesmo ser reparado. Tal reconstituição e cura, no entanto, não era tarefa fácil. Não se faz com represálias, nem mesmo com algumas sessões – sempre fragmentadas – de análise. Jamais seria possível fazê-lo diante de uma história que não pode ser contada, precisando ser revivida compulsivamente até... sabe-se lá até quando.
O desejo por segurança, o medo do novo, tantas vezes nos prende ao velho tão inadequado, tão desconfortável. A tal zona de conforto, cujo nome parece, ao mesmo tempo, tão inapropriado e tão exato, nos segura ali, “firmes”, e nos faz empunhar a faca para nos defender dos cortes da vida, para defender nosso lugar já familiar diante de tão assustador futuro, já que ele é necessariamente obscuro e inacessível. É preciso ser possível dar sentido à nossa história, poder contá-la e recontá-la a nós mesmos, produzindo novas versões, novos entendimentos, até que possamos tê-la exaurido, cortando-a finalmente de nossas vidas, não como esquecimento, mas removendo dela o investimento, podendo lançá-lo adiante, dando um salto rumo ao precipício de possibilidades que é o amanhã.