domingo, 11 de junho de 2017

Entre duas vidas

A angústia de precisar ser aquele que não gostaria de ser, o medo de nunca conseguir ser aquele que sonha em se tornar. Uma pertinência que produz identidade reiterando a miséria e o risco versus uma perspectiva de superação que parece fazer abandonar a história e tudo o que lhe faz parte, a família, a comunidade, que parece trair o que lhe constitui enquanto pessoa. Sim, até aqui tudo soa muito abstrato e talvez muitos consigam recortar e conjugar esses sentidos em suas próprias mazelas, em seus próprios conflitos, mas eu falo aqui especificamente de algumas vidas, geralmente negras e pobres, comumente periféricas e certamente marginais.
Nasceu na periferia de uma urbe qualquer, cresceu meio só, meio solto, meio criado pelo mundo, pela rua. O pai policial, um filho em cada canto, pensões recortadas do seu salário, ausência recorrente.  A mãe é uma qualquer (porque não tem importância na vida do homem que a engravidou, mas também porque é assim tratada por dar a si mesma em busca de reconhecimento de um homem qualquer). Já os avós, eles são os personagens idealizados, talvez porque distantes temporalmente, talvez porque distanciados geracionalmente do caos da urbanidade e da violência que só crescem, mas especialmente por terem conseguido garantir a ele um aspecto de segurança onde só havia instabilidade.
E ele vive preso na dualidade: entre o ódio de todos os policiais tão truculentos e desrespeitosos e o desejo de se tornar um, poderoso e justo; entre a vida loka das ruas que ajudaram a criá-lo e o sonho de ser maior, vivendo outra vida, em outra comunidade. O garoto inteligente, perspicaz, captura os intentos institucionais: desafia e pede ajuda, acusa e faz apelos desesperados e disfarçados de raiva, uma raiva contida que não se contém estrategicamente para esconder a dor. Mas não se atreva a apontar sua inteligência, pois soa como uma acusação, não arrisque mencionar que ele pode ter futuro, porque ele recebe como uma ameaça. Ameaça de ser mais do que lhe é permitido? Ameaça talvez de trair seu eu, tão marcado com o estigma marginal?
Usuário de crack, se declarava viciado e pedia ajuda para largar, já que as primeiras vítimas de suas recaídas eram sempre seus avós, seus redentores. Eram eles as primeiras vítimas dos roubos porque essa coisa de arriscar a vida e o futuro no crime não era pra ele, mas essa vida de ir bem na escola, de ser um prodígio, por outro lado, era muito assustadora, e era ela, a fé cheia de cobrança que lhe depositavam que ele parecia não sustentar e que acabava jogando ele de volta na pedra. Ele apelava por algum auxílio, mas o que pedia mesmo era que ninguém o acusasse com aquelas perspectivas que projetavam seus grandes sonhos pecaminosos.
Ele não conseguia sair do seu paradoxo. Vivia a dor de reiterar seu eu periférico, viciado, e permanecia preso àquela vida; por outro lado a esperança de acreditar que era diferente dos outros organizava suas ideias, vez ou outra, fazia-no desafiar o destino e ir em frente, mas ia se equilibrando na corda bamba da vida que não merecia (ou que não lhe cabia), e o chão – a pedra – o chamava mais forte, e assim ele caía. Era por amor aos avós que tentava sair, era por identidade à mãe e até por uma espécie de respeito também àqueles que não poderia ir nunca tão longe. Era por uma idealização às avessas com o pai que queria se tornar um bom policial mas mesmo sem querer, de alguma forma ele sempre seria filho da mãe e do pai, e o neto que nunca mereceria o amor dos avós, sempre mártires, como o são os bons heróis de qualquer história. Ou talvez fosse ele mesmo o mártir (anti) herói.