sábado, 3 de dezembro de 2016

Entrando nas mentes

Era uma manhã qualquer, daquelas quentes, cotidianas e enfadonhas que qualquer um de nós tem cotidianamente. Eu, a psicóloga, cumpria com minhas funções burocráticas: ligações, relatórios, preenchimento de dados. Os adolescentes estavam na outra sala, ao final do corredor, em atividade socioeducativa. Naquele dia eu não participava da atividade e não havia atendimentos planejados previamente: o dia seria de tarefas mecânicas e repetitivas.
De repente, uma colega irrompe porta adentro e se dirige a mim dizendo que eu precisava fazer o atendimento de um dos adolescentes, que ele não estava colaborando com a atividade, que ele claramente estava com problemas e que só eu – a psicóloga – poderia resolver! Só eu, ninguém mais! É claro que não foi bem assim e que eu não havia nada de heroico na minha função. Ainda desconcertada com a abordagem, aceitei a tarefa imposta.
O adolescente entrou na sala de atendimento com aquela atitude de fingida indiferença, velha conhecida minha ao trabalhar com ele e com outros como ele. Entrou e permaneceu calado, afinal a demanda de estar ali não partiu dele e ele devia sentir essa “conversa com a psicóloga” como uma punição por não colaborar na atividade imposta a ele coercitivamente. A cada segundo silencioso, a tensão parecia aumentar e ele parecia sentir-se mais coagido, como se a chave de sua saída daquela situação fosse falar, mas não qualquer coisa; ele precisava falar algo que me deixasse satisfeita com a conversa bem sucedida. Ele ensaiava dizer qualquer coisa, mas precisava ter cuidado, havia segredos que não podiam ser revelados.
Começou relatando uma situação qualquer, da forma mais despojada possível: estava preocupado com uma arma que foi encontrada no quintal da casa de uma pessoa, pela qual podia ser incriminado. Da minha parte, aquilo não me dizia nada. Não sei se porque não fazia sentido, porque não era inteligível pelo meu referencial pessoal, ou se porque eu achava que saber daquilo só me deixava a par da existência de uma arma de fogo que eu não sabia onde estava nem quem havia escondido. O claro mal-estar do rapaz – que ficava mais claro a cada segundo suado daquela manhã infernal debaixo de um ventilador barulhento – não se dissolvia nem se resolvia diante daquilo que ele queria me vender como uma grande revelação. Ele logo percebeu que não havia acertado a senha necessária para ser liberado dali.
Eu me perguntava, no entanto, se cabia a mim, se era meu papel dissipar aquele mal-estar que parecia tão difuso, se aquilo se referia ao meu trabalho ou se eu estava assumindo uma demanda – nem minha nem do adolescente – mas dos colegas que, desconfortáveis, despejaram o rapaz na sala de atendimento para que eu resolvesse algo indefinido magicamente. Esse pedido que os colegas frequentemente fazem, e que nem sei se chega a ser um pedido, mais parece se configurar como a última medida - ultima ratio -, como se a psicóloga fosse uma plataforma onde se lança o dejeto de desfuncionalidade com o qual ninguém conseguiu lidar.
Ouvimos dizer que em algumas profissões, é preciso ter raciocínio rápido. Puxar o gatilho ou não, disparar a arma ou não, decisão a ser tomada em milésimos de segundos. Eu também precisava decidir logo: permanecia ali ou não, perseguia aquela linha de raciocínio ou não. Na dúvida sobre o que fazer ou como proceder, obedeci à minha curiosidade: mas por que você seria incriminado por uma arma que não é sua e que está num quintal que nem é o seu?
Daí em diante, ele reconta a mesma história de diversas maneiras. Ingênua ou intuitivamente, sem compreender ainda, eu continuo perguntando e tentando fazer sentido pra mim. A cada pergunta e a cada nova versão da história, novos elementos. A cada novo elemento disponibilizado, a indiferença dele ia se dissipando e se transformava numa demanda ansiosa, que agora era dele: O que eu faço nessa situação?, ele me perguntava nas entrelinhas. Mas eu ainda não conseguia entender qual era a situação precisamente e a frustração crescia de ambos os lados.
Continuamos nessa dança por minutos, longos minutos. Quantas fossem as formas de contar a mesma história, tantas eram as novas perguntas que me vinham à cabeça. Inicialmente tenso e coagido, ele agora me pedia algo, queria que eu ajudasse naquela tomada de decisão e a ansiedade era outra, era agora a de revelar sem revelar, a de se fazer entender sem explicar. Finalmente, as peças se encaixam, eu construo um todo coerente com todos aqueles elementos e pergunto: foi isso que aconteceu?
Ele, até então tomado de angústia, respira aliviado mas estupefato ao mesmo tempo: “Como você descobriu? Você entrou na minha mente!”, e isso parecia uma acusação e um agradecimento ao mesmo tempo. Agora eu podia ajuda-lo e ele tinha certeza de que não foi ele quem me contou (ele não era um “caboja[1]”), mas eu é que tinha o poder – paranormal, aparentemente – de entrar em sua mente. “O que eu faço?”, os seus olhos clamavam. Para sua decepção, coloco as cartas na mesa e indico: aqui, a consequência parece ser essa, ali, aquela. Decida. E ele já estava decidido, mas receava o que vinha daquilo.
Finalmente ele havia encontrado a chave e podia ir embora. Mas agora ele preferia continuar e levar consigo a minha reposta. Para o azar dele, eu era a guardiã daquela porta e fui embora, deixando-o com seus dilemas. 


[1] Gíria comum entre os adolescentes que indica uma pessoa não confiável, que dedura o colega.