domingo, 22 de janeiro de 2017

O que é uma mãe?

Era uma mãe em permanente estado de angústia. Antes, por ver seu filho enveredar por um caminho perigoso, infracional. Depois, por vê-lo magoado consigo, negando-se a manter contato com ela e a entender sua decisão. A atitude do filho não era o que mais doía, no entanto. As outras mães, vizinhas, amigas e também aquelas que participavam com ela dos grupos de família propostos pelo serviço onde os jovens iam responder pelos atos cometidos, quase em uníssono, apontavam-lhe o dedo: “Que mãe é essa, capaz de denunciar o próprio filho?!?”. Lavada em lágrimas, ela tentava responder e justificar: “O que mais eu poderia ter feito? Será que eu deveria tê-lo deixado seguir por aquele caminho? O que seria dele hoje?”
Todo mês era assim, ela ia para o grupo, expunha sua história e se tornava o foco do debate. A temática planejada para aquela atividade se perdia; todas queriam opinar, julgar, condenar... “Que mãe é essa?!?”. Ela permanecia indo religiosamente, não faltava nunca, como se fora uma autopunição, como se precisasse daquilo para sentir-se castigada por ter chamado a polícia para prender o filho. Ela mesma não tinha qualquer convicção da decisão tomada e parecia ansiar por aquele momento, como se necessitasse ser condenada junto com ele.
Diante daquilo, a única medida era resgatá-la do grupo, tirá-la dali e trazê-la para os atendimentos individuais. Nestes, as mesmas lamentações: “O que mais eu poderia ter feito?”. Clamava por uma resposta ou talvez quisesse que também a profissional desse-lhe sua dose de penitência. Presa em um ciclo que ia desde o questionamento de um modelo ideal de mãe ao comportamento infracional do filho, repassando infinitamente pelos comentários recebidos, ela não conseguia sair do lugar e era impossível elaborar toda aquela dor e toda aquela dúvida: “até os policiais me olharam estranho – dizia ela – quando entenderam que era meu filho que eles deveriam levar”. Não sei até hoje se esses olhares doíam mais ou menos que o olhar do filho, suplicante, que pedia para ela não deixar os policiais o levarem, prometendo mudar.
Já ele, o filho, passou uma noite detido na delegacia. Noite decisiva, contava ele: “Como ela foi capaz de chamar os polícia e me deixar ser levado por eles?”. O sentimento de desamparo sentido naquela noite o assombrava e sustentava sua nova postura de inimigo da mãe, logo ele que a amava tanto, que a venerava. Depois passou pelas audiências de onde saiu a decisão de que deveria cumprir medida socioeducativa por seis meses. Ele estava inconformado, era como se ela tivesse tornado público um problema que eles podiam resolver na privacidade familiar, como se não concernisse a todas aquelas instituições entrar no jogo.
Diferente dos outros, ele não tinha rodado por vacilo. A polícia não o pegou em flagrante, mas ele havia sofrido uma traição por parte da pessoa em quem ele mais confiava. O sentimento parecia ser o de uma mágoa profunda pela traição, por ter se visto sem poder se defender, por ter sido pego de guarda baixa. Aquilo lhe parecia imperdoável. A relação anterior e o sentimento que nutria por ela, no entanto, estava ali latente e ele, mais rapidamente que ela, ia conseguindo elaborar tudo aquilo: “eu fiz muita besteira, maltratei muito ela, fiz ela sofrer” e bem aos poucos, ia concluindo ter merecido a medida tomada pela mãe.
Quase disfarçadamente, foi se reaproximando dela. Não fez as pazes explicitamente, não fez nenhum discurso bonito nem disse que a perdoava. Esses roteiros emocionantes cabem no cinema, nas novelas, mas na vida as palavras às vezes são excesso. Como o filho pródigo, ele vai retornando ao lar, ao colo que sempre fora seu. Ela, do seu lugar de mãe – dessa vez, uma daquelas mães que povoam nosso imaginário – não questionou, não comentou nada, só aceitou seu retorno e foi recebendo o filho de volta ao seio familiar, aquele filho de antes.
Cada um por sua vez, nos grupos e nos atendimentos individuais, foi mostrando mais leveza. A angústia dela foi se dissipando ao mesmo tempo em que a mágoa dele não encontrava mais seu alvo. As lágrimas dela foram ressignificadas e passou a chorar emocionada. Sua dúvida não existia mais, pois agora ela estava orgulhosa da mãe que fora e da difícil decisão que tomara: “Ah, se todas as mães tivessem a coragem e a atitude que eu tive!”. Ele, também orgulhoso, sente até gratidão por ela e com a namorada/esposa grávida, quer ser o pai que não teve e cujo papel afirma ter sido assumido por sua mãe que, grandiosa, foi pai, foi mãe e foi amiga.

Às vezes encontramos finais felizes. Como todos eles, esse aqui não é diferente e oculta todo um futuro que continuou se processando, um futuro que certamente contou com novos conflitos, outras dores e problemas que não mais nos alcançaram. O mérito? Se meu, se deles ou se das contingências da vida, vai saber... Só é bom lembrar dessas histórias e acreditar que a gente não está a toa por aqui.

domingo, 1 de janeiro de 2017

Há que se fazer o corte

Nascido de um corte longitudinal, não de um que se faz na barriga da mãe que carrega o bebê, mas de um feito nele mesmo. Tão menino, acorda de seus longos dias moribundos, vítima de uma violência que, literalmente, o corta da vida familiar. Daí pra frente, esse se tornou seu significante, o corte. A faca, seu instrumento de defesa (ou quaisquer outros objetos cortantes). Havia aqueles – a maioria dos adultos, cuidadores, guardiões – que acreditavam que o então rapaz poderia, de fato, usar o instrumento para reproduzir neles o que houve consigo, e ter cuidado é sempre bom, especialmente se para tê-lo, desenvolve-se alguma sensibilidade. Não era o caso, infelizmente. Ele resistia aos novos cortes ameaçando fazê-los ele mesmo com o instrumento que estivesse disponível. E quantos cortes lhe rondavam, quantos cortes nos rondam sempre...
Criado institucionalmente, seu corte trouxe consigo um irmão, este que, recém nascido, foi removido da família e colado a ele a fim de ser preservado de uma violência similar. Este último, literalmente criado pela instituição, nunca entendeu sua história, encoberta pelo tabu do corte que separava toda a vida anterior desta e, sem nunca entender ter sido salvo pelo corte físico do irmão, nunca o perdoara por ter sido alienado ao direito de ter um pai e uma mãe. A cegueira de quem não viveu a história e daqueles que jamais conseguiriam sequer se aproximar da dor que ela trazia, fez com que ligassem um ao outro, sem de fato costurar suas histórias, sem nunca permitir que eles entendessem como seus laços ultrapassavam o sangue e o DNA. O mais velho, carregando suas reminiscências e sempre pronto a defendê-los de um novo corte, impedia qualquer mudança, qualquer possibilidade de novos rompimentos, ao tempo em que, inadvertidamente, acabava às vezes produzindo-os: transferências, separações e finalmente, a desvinculação com seu resto de família, o irmão mais novo.
Houve diversas tentativas: brasileiros e estrangeiros, desejosos de ter filhos se aproximavam, prometiam uma nova vida, mas o primeiro garoto, marcado pelo seu significante, usava seu instrumento sempre que a coisa ficava muito séria. Os pretendentes recuavam, é claro: quem vai condenar os futuros pais, submersos em sua fantasia de família feliz, de não conseguirem lidar com a ameaça do corte real? O corte simbólico, no entanto, aquele significante que mobilizava o rapaz, incompreendido e incontrolável, só queria ele mesmo ser reparado. Tal reconstituição e cura, no entanto, não era tarefa fácil. Não se faz com represálias, nem mesmo com algumas sessões – sempre fragmentadas – de análise. Jamais seria possível fazê-lo diante de uma história que não pode ser contada, precisando ser revivida compulsivamente até... sabe-se lá até quando.
O desejo por segurança, o medo do novo, tantas vezes nos prende ao velho tão inadequado, tão desconfortável. A tal zona de conforto, cujo nome parece, ao mesmo tempo, tão inapropriado e tão exato, nos segura ali, “firmes”, e nos faz empunhar a faca para nos defender dos cortes da vida, para defender nosso lugar já familiar diante de tão assustador futuro, já que ele é necessariamente obscuro e inacessível. É preciso ser possível dar sentido à nossa história, poder contá-la e recontá-la a nós mesmos, produzindo novas versões, novos entendimentos, até que possamos tê-la exaurido, cortando-a finalmente de nossas vidas, não como esquecimento, mas removendo dela o investimento, podendo lançá-lo adiante, dando um salto rumo ao precipício de possibilidades que é o amanhã.