domingo, 24 de novembro de 2019

Das lágrimas

Mal começa a falar, as lágrimas lhe saltam aos borbotões e a psicóloga lhe dirige a caixinha de lenços. Ela começa, então, a tirar os lenços, um-a-um, cuidadosamente. Dobra os que estão na sua mão e empurra de volta pra dentro da caixa o próximo, a ser utilizado por outros pacientes ou por ela mesma dali a alguns minutos. O olhar baixo no lenço que vai sendo dobrado até o seu limite enquanto ela fala sem parar da sua dor. O lenço é alçado para enxugar as lágrimas que já escorrem até o pescoço e ela volta a dobrá-lo, alisando suas bordas, como se precisasse ordenar alguma coisa naquele cenário. Nas sessões seguintes, parece estar em disputa consigo mesma: "hoje eu não chorei"; "lá vem o choro de novo" e "dessa vez eu não acabei com os lenços todos".

Já ele, homem, não chora nunca. Insiste e tenta convencer de uma apatia em relação a tudo o que há no mundo, insiste em dizer que essa é sua questão. E talvez até seja, mas não porque não sinta. Sentir dói muito e o choro talvez denuncie a dor que ele não quer sentir. Assim, ele não chora nunca. Nunca.

Os homens, em geral, não choram em análise, na sessão, o que não implica em dizer que não confessem ali suas dores e vulnerabilidades. Outro desses, também nunca chorou em sessão, mas sempre relata suas inseguranças e suas lágrimas que correm na intimidade do seu quarto. Ali, relata o que sente como se falasse de um personagem que não ocupa o mesmo corpo que o seu, mas que sabemos - e ele sabe também - que divide com ele este corpo.

El'outra também não chora; aliás, até ali não havia chorado. Postura muito analítica, quer entender tudo, todas as nuances e miudezas do que está sendo feito na sessão, o que está sendo feito, aliás, da sua história. Certo dia, falava de algo aparentemente banal e as lágrimas lhe vieram inadvertidamente, assustando-a: enquanto chora, se pergunta de onde vem aquilo, o que foi capaz de lhe arrancar tantas lágrimas. A psicóloga permanece sem responder, e a deixa passar com a sua dor.

Outra dessas mulheres, forte, tenta nunca chorar, mas aprendeu finalmente a fazê-lo. Puxa os lenços aos montes, tentando prevenir que lavem seu rosto e seu colo. Faltava a semana seguinte à cada sessão em que se mexia algo de muito importante, queria evitar o choro e a dor. O manejo da psicanálise prevê essas coisas, e diante das intervenções feitas, ela passa a ir sem falta, e já vai preparada, com os grandes e estilosos óculos escuros pra sair dali invulnerável aos outros.

Mais uma delas assume aquele espaço como sendo o de colocar aquelas dores pra fora. Parece achar que uma sessão não chorada é uma sessão perdida. Vai disposta a mexer no que há de mais dolorido. Pega dois ou três lenços na caixa, enxuga as lágrimas e aperta os lenços com tanta força que, molhados e pressionados, eles viram pequenos fragmentos. Claramente não lhe é fácil confessar suas fraquezas, suas dores e dúvidas: entre a resistência em falar daquilo e a injunção que faz a si mesma de ter que falar e mergulhar no sofrimento, o fim do lenço de papel representa bem o que sente.

Os usos que se pode fazer do espaço analítico são os mais diversos possíveis. A regra de que se fale  de tudo que vem à mente implica em tratar do real e do banal, do que claramente traz consigo a marca do sofrimento e do que mascara uma dor profunda. O que se faz com as mãos, com os lenços, com o olhar, com a barra da saia ou com a garrafinha de água, tudo fala do que faz ali questão.

Chorar não pressupõe a dor, menos ainda a cura que se espera em análise, mas diz respeito apenas a uma forma de se dirigir ao Outro, a um modo de revisitar e ressignificar sua história. Freud já havia ensinado que o propósito da análise não é acabar com a dor - afinal ela faz parte da vida - mas sim a de tornar uma dor neurótica, com a qual não se consegue viver, em uma dor banal, e Lacan, por sua vez, já nos esclareceu que a cura esperada nada mais é do que saber conviver com o seu sintoma.

E assim, as lágrimas continuarão a fluir diante dos afetos inerentes à vida bem sentida. Alguns aprenderão sobre a libertação que o choro proporciona, e derramarão mais lágrimas, outros conseguirão enfrentar as novas dificuldades com menos desespero e guardarão as lágrimas. Outros ainda permanecerão sem derramá-las, mas talvez consigam entender o choro que lhes perpassa o espírito, encontrando nele as perguntas para seguir adiante.