terça-feira, 17 de julho de 2018

Quando a palavra perde o eco

Ele era apenas uma criança quando emudeceu. Pela idade, o esperado era que brincasse com os outros, tagarelasse muito, perguntasse o por quê das coisas, mas as contingências da vida o calaram.
Não, não falarei de contingências e sim de golpes... Todos os laços afetivos que havia desenvolvido até ali foram ceifados de sua vida, um a um, tirando-lhe o sentido da palavra. Para que falar, quando não há quem escute? O que perguntar, se não há quem responda?

A palavra liberta. Da minha parte, escrevo para tentar organizar algo, de mim ou do mundo como a mim se apresenta, sejam as ideias que pululam, o caos que atravessa, a dor que representam essas histórias e/ou a alegria de saber que elas possam encontrar caminhos além do sofrimento. A palavra, no entanto, precisa de sentido para existir. Precisa, aliás, ser ela capaz de produzir algum sentido.

O nosso menino conviveu muito cedo com diversas violências e o acolhimento institucional tornou-se a única saída naquele momento para ele e suas irmãs. O sistema, no entanto, prontamente o separou da mais velha e ele certamente não pôde entender essa primeira perda. Naquele ponto ainda tinha outra irmã e visitas pontuais da mãe que tentava resgatar sua "maternidade". Em pouco tempo, alguém decide que isso não seria possível e, sem qualquer explicação, é a mãe que desaparece da sua vida. Resta-lhe ainda uma irmã. Esta, também criança, torna-se a sua responsável: cuida, protege, garante a estrutura familiar mínima. Mas ela também parte sem aviso prévio ou posterior que o valha.

Então ele calou. Problema instalado, a urgência para resolver: "Liguem pras irmãs!". Elas atendiam o telefone, falavam, choravam do outro lado da linha enquanto ele permanecia mudo e aparentemente impassível, esperando autorização para voltar a brincar - autisticamente - com seus brinquedos. Atendimentos, estratégias lúdicas, desenhos, etc., nada funcionava.

Foi então que se abriram as casas. Nelas, embora ainda em ambiente institucional, deveria haver algo de um lar: uma mãe, um sentimento de família, uma re-união daqueles que sofreram as faltas de sentido de um sistema tão perverso. Ele finalmente reencontrou uma das irmãs e encontrou um espaço que se tornaria seu. Encontrou um guarda-roupa, gavetas e prateleiras. Encontrou espaços pessoais e convivenciais. Encontrou uma irmã de sangue e irmãos de coração. Encontrou uma mãe cuidadosa que lhe dava um lugar e uma função na casa e na vida e enfim, encontrou até mesmo uma profissional da psicologia designada apenas para ele (ao contrário daquela profissional do serviço de saúde que atendia a todas as crianças, como ocorria antes).

Por muitos dias, ele ainda nada dizia. Nos primeiros, arrastava um saco com seus pertences pra lá e pra cá, como se explorasse o espaço, como quem verifica e decide se pode finalmente desligar o estado de alerta, de desconfiança e de prevenção da dor que, no entanto, já está há muito instalada. Aos poucos, encontra espaço para seus pertences, encontra também lugar para o seu ser naquela rotina, e eis que um dia uma palavra surge... primeiro como um som quase ininteligível, depois como palavras reunidas até se tornar uma enxurrada de frases e de ideias, como se ele precisasse fazer escoar tudo que ficara guardado por tanto tempo.

É engraçado como costumamos associar a palavra com significados e separá-la do afeto, compreendendo-o como aquilo que não pode ser expressado semanticamente. Pois foi naquele momento mesmo, no momento em que ele voltou a encontrar as palavras, que ele parece ter se aberto novamente para o amor, para novas possibilidades de fazer laços e de resgatar aqueles que já pareciam rompidos. Não é possível dizer o que veio antes, se a abertura para o afeto ou a possibilidade de falar, mas é certo dizer que havia novo sentido ali, era então possível sentir e ser.

O amor e a palavra precisam de alguma segurança, ou melhor dizendo, de confiança. Aquele que sente e que fala precisa acreditar que nada será usado contra si, precisa sentir a convicção de que a entrega que faz, embora sem garantias de reciprocidade, possa ser recebida com a mesma autenticidade com que é lançada. Os riscos do "ser sujeito", inevitáveis que são, estão sempre lá, é certo, mas tornam-se enfrentáveis se se acredita haver onde pousar, se há consistência e pertinência.

Um comentário:

  1. "O amor e a palavra precisam de alguma segurança, ou melhor dizendo, de confiança. " O mundo tem outra cor quando se entende isso com toda propriedade.

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