domingo, 7 de maio de 2017

Ser menina ou ser mulher?

Fui instada a rememorar histórias doídas, aquelas nas quais atravessa uma agonia que parece nos dizer que não há para elas solução ou cura. Pensar sobre violências que podem ser lançadas sobre qualquer um, mas que geralmente atingem aquelas mais vulneráveis, aquelas que estão tão desprotegidas porque vitimadas por quem deveria garantir-lhes abrigo e proteção. Não, não são só meninas, mas falemos aqui delas, porque são elas o alvo preferido, são elas as que mais sofrem, quando não a violência explícita, a violência cultural de serem responsáveis pela garantia da harmonia de todo e qualquer conflito. Que mulheres elas se tornarão? Que mulheres somos nós que já chegamos até aqui?
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Devia contar com uns 7 anos, talvez 8, não mais do que 9. As marcas da violência eram-lhe visíveis, e isso já fazia com que ela atraísse uma atenção inadvertida, incompreensível para ela. Apesar da dor que sentia, a violência não era sentida como tal, mas compreendida como amor, afinal, ela era a mulher escolhida pelo pai. Por absurdo que seja – e sentíamos uma repulsa automática pela história – cumpria-se ali uma fantasia edípica e ela só queria convencer a todos que estava tudo bem e que desejava voltar à companhia do seu homem, seu agressor, seu pai. A repulsa, entretanto, trazia consigo um “quê” de encantamento, de fantástico, e diversos profissionais – mal (in)formados – insistiam em querer ouvir sua versão. Ela contava e recontava, como uma história de amor, como que para acelerar sua saída dali e seu retorno ao lar, mas a cada repetição, os olhares abismados e encolerizados davam-lhe o sinal de que talvez devesse guardar consigo aquele conto trágico, daqueles que só quem sente pode compreender. Entre o pedido de segredo feito pelo amado pai, a revelação ingênua como forma de libertação e retorno nunca conquistados, e os indicativos de que quanto mais falasse, menos conseguiria o seu intento, ela finalmente calou. Calou-se completamente e o tanto que ela guardava naquele pequeno coração era imensurável. “Adultecida” precocemente, logo entendeu que aquela luta era sua, e que ninguém era capaz de falar à sua dor e à sua confusão. Tão menina e tão mulher, já sabia preservar os outros em detrimento de si mesma, já sabia preservar a si mesma em detrimento dos seus sentimentos, em prejuízo de sua compreensão de si mesma e de seu lugar no mundo.
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Aqui eram duas, irmãs, sempre juntas, na lembrança e na insegurança do presente e do futuro. Agora a vilã do conto era a mãe, que lhes expunha a tantos homens maus, e que era assim reconhecida pelas filhas e por todos os que conheciam a história. Havia à época da violência também um irmão. Este conseguiu fugir, denunciar e encontrar alguém que o ouvisse e o acolhesse, escapando do destino de institucionalização que coube a elas. Quando a irmã pequena insistia em esquecer da dor que sentira e sonhava em voltar para casa, para uma mãe amorosa que não existia, era a mais velha que lhe dizia: “já esqueceu do que ela fazia com a gente?” e se recusava a falar daquilo de novo, a caçula já indicando estar ciente de que o retorno não era uma saída possível. Essas duas meninas eram “o terror” da instituição: estigmatizadas por sua hipersexualidade, eram acusadas de abusar das outras crianças. Que nome terrível a se dar a uma compulsão à repetição que encobria tamanho sofrimento! Certamente era uma tentativa de controlar o sentimento, uma necessidade inexplicável de sentir o toque e o prazer sexual, mas dessa vez na sua própria hora, com aqueles a quem amavam e compartilhavam uma vida. Será que eu sirvo pra mais alguma coisa? Parecia ser essa a pergunta que lhes guiava quando, querendo conquistar qualquer coisa, escolhiam uma figura masculina e tentavam consegui-lo por uma espécie de sedução que mais constrangia a eles e reforçava nelas seu (não) lugar.
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Por fim, mais três irmãs. E aqui o malfeitor volta a ser o pai, confundindo violência com carinho. Abusivo com elas e com a mãe delas, parecia tomá-las todas como objetos que possuía e com elas faria o que bem entendesse. Perspicaz, no entanto, fazia o personagem do pai, do marido e do vizinho perfeito: estava acima de qualquer suspeita em um mundo em que a palavra da mulher e da criança carece ainda de legitimidade. A esposa denunciava suas violências como podia e para quem a ouvisse e lhe passasse um pouquinho de confiança. As crianças também o denunciavam com seus terrores noturnos e suas masturbações compulsivas que lhes afastavam das brincadeiras coletivas. Sendo três e muito novas, cada uma respondia ao seu modo. A mais velha das três, tinha lá para os seus 7 anos, rejeitava receber o pai nas visitas, colando na mãe quando ela ia junto, chorando e se recusando a sair quando não fosse esse o caso. A do meio, com 5 ou 6 anos, ganhou logo a fama de espevitada (e mais uma vez o estigma fica marcado) pois não podia ver aquele homem que logo pulava no seu colo. A mais nova, devia contar com três anos, até então não falava e de tanto que se isolava, não era jamais vista a brincar com os outros. As duas mais velhas, aliás, apesar de já falarem, desenvolveram uma gagueira, sinal do silêncio imposto sob ameaça. Com a conversação prejudicada, encontravam alternativas para comunicar a violência, mas quem as acolheria, se as provas não eram “claras e contundentes”? E de que outras provas precisávamos, afinal?
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Em todas elas, uma história que não se pode revelar, um silêncio e uma angústia a se (e de se) guardar, um tempo que não sai nunca do lugar, tempo estagnado, preso entre uma infância não vivida e uma vida adulta iniciada cedo e que, no entanto, não pode ser começada nunca. Meninas e mulheres, em que ponto de sua história será possível se libertar?