Fui instada a rememorar histórias
doídas, aquelas nas quais atravessa uma agonia que parece nos dizer que não há
para elas solução ou cura. Pensar sobre violências que podem ser lançadas sobre
qualquer um, mas que geralmente atingem aquelas mais vulneráveis, aquelas que
estão tão desprotegidas porque vitimadas por quem deveria garantir-lhes abrigo
e proteção. Não, não são só meninas, mas falemos aqui delas, porque são elas o
alvo preferido, são elas as que mais sofrem, quando não a violência explícita,
a violência cultural de serem responsáveis pela garantia da harmonia de todo e
qualquer conflito. Que mulheres elas se tornarão? Que mulheres somos nós que já
chegamos até aqui?
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Devia contar com uns 7 anos,
talvez 8, não mais do que 9. As marcas da violência eram-lhe visíveis, e isso
já fazia com que ela atraísse uma atenção inadvertida, incompreensível para
ela. Apesar da dor que sentia, a violência não era sentida como tal, mas
compreendida como amor, afinal, ela era a mulher escolhida pelo pai. Por absurdo
que seja – e sentíamos uma repulsa automática pela história – cumpria-se ali
uma fantasia edípica e ela só queria convencer a todos que estava tudo bem e
que desejava voltar à companhia do seu homem, seu agressor, seu pai. A repulsa,
entretanto, trazia consigo um “quê” de encantamento, de fantástico, e diversos
profissionais – mal (in)formados – insistiam em querer ouvir sua versão. Ela
contava e recontava, como uma história de amor, como que para acelerar sua
saída dali e seu retorno ao lar, mas a cada repetição, os olhares abismados e
encolerizados davam-lhe o sinal de que talvez devesse guardar consigo aquele
conto trágico, daqueles que só quem sente pode compreender. Entre o pedido de
segredo feito pelo amado pai, a revelação ingênua como forma de libertação e
retorno nunca conquistados, e os indicativos de que quanto mais falasse, menos
conseguiria o seu intento, ela finalmente calou. Calou-se completamente e o
tanto que ela guardava naquele pequeno coração era imensurável.
“Adultecida” precocemente, logo entendeu que aquela luta era sua, e que ninguém
era capaz de falar à sua dor e à sua confusão. Tão menina e tão mulher, já
sabia preservar os outros em detrimento de si mesma, já sabia preservar a si
mesma em detrimento dos seus sentimentos, em prejuízo de sua compreensão de si
mesma e de seu lugar no mundo.
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Aqui eram duas, irmãs, sempre
juntas, na lembrança e na insegurança do presente e do futuro. Agora a vilã do
conto era a mãe, que lhes expunha a tantos homens maus, e que era assim reconhecida
pelas filhas e por todos os que conheciam a história. Havia à época da
violência também um irmão. Este conseguiu fugir, denunciar e encontrar alguém
que o ouvisse e o acolhesse, escapando do destino de institucionalização que
coube a elas. Quando a irmã pequena insistia em esquecer da dor que sentira e
sonhava em voltar para casa, para uma mãe amorosa que não existia, era a mais
velha que lhe dizia: “já esqueceu do que ela fazia com a gente?” e se recusava
a falar daquilo de novo, a caçula já indicando estar ciente de que o retorno
não era uma saída possível. Essas duas meninas eram “o terror” da instituição:
estigmatizadas por sua hipersexualidade, eram acusadas de abusar das outras
crianças. Que nome terrível a se dar a uma compulsão à repetição que encobria
tamanho sofrimento! Certamente era uma tentativa de controlar o sentimento, uma
necessidade inexplicável de sentir o toque e o prazer sexual, mas dessa vez na
sua própria hora, com aqueles a quem amavam e compartilhavam uma vida. Será que
eu sirvo pra mais alguma coisa? Parecia ser essa a pergunta que lhes guiava
quando, querendo conquistar qualquer coisa, escolhiam uma figura masculina e
tentavam consegui-lo por uma espécie de sedução que mais constrangia a eles e
reforçava nelas seu (não) lugar.
*
Por fim, mais três irmãs. E aqui
o malfeitor volta a ser o pai, confundindo violência com carinho. Abusivo com
elas e com a mãe delas, parecia tomá-las todas como objetos que possuía e com
elas faria o que bem entendesse. Perspicaz, no entanto, fazia o personagem do
pai, do marido e do vizinho perfeito: estava acima de qualquer suspeita em um
mundo em que a palavra da mulher e da criança carece ainda de legitimidade. A
esposa denunciava suas violências como podia e para quem a ouvisse e lhe
passasse um pouquinho de confiança. As crianças também o denunciavam com seus
terrores noturnos e suas masturbações compulsivas que lhes afastavam das
brincadeiras coletivas. Sendo três e muito novas, cada uma respondia ao seu
modo. A mais velha das três, tinha lá para os seus 7 anos, rejeitava receber o
pai nas visitas, colando na mãe quando ela ia junto, chorando e se recusando a
sair quando não fosse esse o caso. A do meio, com 5 ou 6 anos, ganhou logo a
fama de espevitada (e mais uma vez o estigma fica marcado) pois não podia ver
aquele homem que logo pulava no seu colo. A mais nova, devia contar com três
anos, até então não falava e de tanto que se isolava, não era jamais vista a brincar
com os outros. As duas mais velhas, aliás, apesar de já falarem, desenvolveram
uma gagueira, sinal do silêncio imposto sob ameaça. Com a conversação
prejudicada, encontravam alternativas para comunicar a violência, mas quem as
acolheria, se as provas não eram “claras e contundentes”? E de que outras provas
precisávamos, afinal?
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Em todas elas, uma história que
não se pode revelar, um silêncio e uma angústia a se (e de se) guardar, um
tempo que não sai nunca do lugar, tempo estagnado, preso entre uma infância não
vivida e uma vida adulta iniciada cedo e que, no entanto, não pode ser começada
nunca. Meninas e mulheres, em que ponto de sua história será possível se
libertar?