terça-feira, 5 de setembro de 2017

Além dos limites do sucesso

Um "menor infrator" foi assassinado.
Um adolescente envolvido com roubo e com disputas entre gangues foi morto a tiros pela gangue inimiga.
O adolescente de 16 anos, cujos pais estavam presos, foi alvejado no meio da sua comunidade, pelo grupo com quem nutria inimizades.
Aquele rapaz que sonhava alto, carinhoso que só ele, e que planejava deixar aquela vida tão logo conseguisse liquidar suas dívidas, foi morto numa tarde de agosto.
Havia dívidas em dinheiro, dívidas em drogas, dívidas em vidas e desafetos.
Era aquele menino que chegava todo dia com um sorriso largo, sempre otimista, acreditando que haveria um amanhã diferente.
Era aquele que sempre alertava os novatos para que tivessem cuidado, porque aquela moça ali ia entrar na cabeça deles; era aquele, no entanto, que tinha conversa pra todo dia, no fundo desejando que a moça entrasse na sua cabeça e ajudasse a remontar as peças da sua vida.
Foi aquele jovem, envolvido com o crime, que morreu prematuramente porque quis ou mereceu (?), porque sua esperança não conseguiu superar a realidade que lhe batia a porta: a realidade travestida de vingança, a realidade vestida dela mesma.

Foi esse adolescente que mostrou a face dura da morte: morte da esperança, morte da vontade profundamente verdadeira porém impotente, uma morte prematura da vitalidade e da mudança.
Foi ele também que mostrou a vida: a vida da alegria, a vida de saber que, não tendo ninguém, era possível não estar só.
Pois esse menino fez uma demanda desesperada, aparentemente tão despropositada, que poderia não ter sido atendida. Perguntou, meio assustado, quase pueril, se ninguém ali podia acompanhá-lo a um depoimento na delegacia de proteção à criança e ao adolescente:

Na delegacia não era um depoimento.
Não havia crime - pelo menos não crime recente.
Na delegacia de proteção havia vingança e violência institucional. O que haveria, aliás, era "pau". Não o houve porque ele estava acompanhado.
A moça de crachá, sua acompanhante, pequena e ingênua, esperava a hora dele depor e sequer sentiu o adensamento progressivo dos humores diante da impossibilidade da violência física que sua presença produzia.
O menino lhe sussurrava aos ouvidos: "se a senhora não estivesse aqui, eles iam me pegar... aquele agente ali não gosta de mim e tinha prometido que ia me pegar pra me bater..."

Querendo ainda acreditar na motivação institucional daquele chamado, os dois esperavam quase pacientemente - ela mais, ele menos. O delegado (ou era o agente), menos ainda.
Esta figura de autoridade - inominável, deveras - finalmente fez seu discurso: olhou pra moça com o crachá, tão pequena e nada ameaçadora e começou a vociferar jargões daqueles vomitados na mídia: "uma menina tão bonita, cuidando de marginal", "direitos humanos deviam ser pra gente direita, não pra esse vagabundo", etc.

O menino, tão doce e carinhoso com a moça que tentava cuidar dele, quis também cuidar dela,  e ameaçava explodir.
Ela pegou então na sua mão e o lembrou com um olhar do que haviam conversado, sobre o cuidado com os atos, sobre decidir como agir e sobre não reagir.
Ele respira fundo e se contém.

O agente continuava a abusar da sua autoridade.
Mais discurso de ódio e a pergunta, direcionada a ela: "como você consegue lidar com esses animais?"
O rapaz não suporta: "aqui a gente é tratado como animal e vira bicho; com elas, a gente é tratado com respeito e lá a gente vira gente".
Ela - que também tem o direito de se orgulhar - sorriu triunfante.
O agente da lei às avessas não podia suportar aquela resposta e assume seu lugar animalesco, confessando o projeto frustrado de violência.

Em toda essa história e antes de ir, ela também falou. Depois de voltar, ela ainda denunciou.
Mas isso não foi o mais importante. Dali por diante, havia finalmente alguém por ele, e isso alimentava a chama da sua esperança.
O final não é feliz, já sabemos: aquele adolescente, que não estava mais só no mundo e acreditava num futuro diferente, não conseguiu deixar sua vida no passado e foi atropelado por ela.

A moça sabe que não está ali para salvar vidas, já que estas protagonizam sua própria história.
Aquela moça, de crachá e registro profissional, chorou a morte do rapaz e precisou fazer luto.
A mulher, psicóloga, queria que tivesse sido diferente, mas aprendeu muito com o menino infrator.
Aprendeu com ele a acreditar e ensinou um pouco de volta, fazendo-o se sentir menos órfão de fé.
Apesar disso tudo, ele foi assassinado.
... mas ela ainda insiste em acreditar que esse foi um caso de sucesso.