Todos os dias,
para todos nós, ou para quase todos, há um alívio em saber que temos para onde
voltar. Saber que há um espaço, nosso, com pessoas, também nossas, para nos
acolher. Para os que vivemos confortavelmente em nossas casas, que dormimos em
camas macias, anunciadas em propagandas nos intervalos das novelas, às quais
assistimos envoltos em lençóis de sabe-se lá quantos fios, parece inconcebível
e exasperador imaginar uma noite dormida ao relento, sem conforto, sem
assepsia, sem segurança, sem posse ou pertencimento. Realmente não deve ser a
melhor das experiências, mas talvez haja piores, ou talvez a questão não possa
ser colocada nesses termos. A despeito dessa conclusão supostamente óbvia, as
pessoas insistem em repetir que o morador
de rua gosta de estar ali, que lá prefere estar, como se a ele fosse
oferecido, como contraponto às ruas, a mesma experiência a qual desfrutamos em
nosso lar. Impossível colocar as coisas nesses termos: estar ou não estar na
rua, como se se tratasse de uma simples escolha entre uma vida segura e
confortável e a liberdade das ruas da cidade. Certamente é bem mais fácil
denegar uma realidade que se passa embaixo dos nossos narizes, previne-nos de
um mal-estar desnecessário. Talvez seja mesmo melhor
que essas pessoas e suas histórias permaneçam invisíveis...
Foi ele, no entanto, um senhor
simpático, falante e geralmente bem-humorado, um dos sujeitos que me arrancou
da minha ignorância auto provocada. Com seu discurso organizado e eloquente,
falava em um vernáculo impecável, superando todas as expectativas
(preconceituosas, diga-se de passagem). Em um primeiro encontro, desconfia-se da
sua condição de morador de rua, já
que esta pode ser capturada em suas roupas, pela visão de seus dentes (ou pela
falta deles), diante do cheiro forte logo no início da manhã, antes do banho
rotineiro no serviço. Em um segundo olhar, ou em uma primeira escuta, a
impressão é completamente outra: leitor voraz, com grande capacidade de análise
das conjunturas sociais e políticas, sabe muito sobre diversos assuntos e
questões e a primeira coisa que qualquer um pensa (ou pensaria) é: “o que ele
faz na rua?”.
Em sua
história, uma mãe abusiva, um pai que abandona a família, irmãos com quem eventualmente
perde contato. Sozinho na vida, mostra no entanto algumas dificuldades de
elaborar sua própria história e por vezes faz crer que as coisas não devem ter
se processado conforme sua narrativa alega ter sido. Seja como for, relata se
envolver nos estudos e se tornar professor, sem ajuda de quem quer que seja, professor
de adolescentes: “ah, prefiro lidar com as pessoas da rua que com adolescentes
de novo!...”. Dizem que surtou em sala aula, supõe-se que saiu mundo afora,
perambulando, sem referências pessoais e sociais e que não conseguiu mais
retornar à vida anteriormente escolhida. O que são essas referências, no
entanto? Tratam-se, necessariamente, de uma mãe ou de um irmão de sangue? Ou
talvez uma esposa ou filhos?
Frequentando diariamente
o serviço de apoio à população de rua, nunca solicitou acolhimento em albergue
(sobre estes, aliás, valeria discorrer com mais detalhes em outro momento). Quando
muito, pede seus documentos ali guardados e preservados a fim de resolver algum
assunto, já que não lhe falta autonomia ou conhecimento dos aparelhos
burocráticos para fazê-lo. Por outro lado, geralmente demanda escuta, que assim
eu chamo, mas que ele prefere chamar (não sem razão) de conversa. Não sem razão porque o que ele solicita ali parece ser a possibilidade de conversar conversas outras, com aqueles que, tal
qual ele próprio, também têm leitura e estudo. Apesar dessa necessidade, domina
com certa destreza a linguagem da rua, tomando-a como seu lar, não pelo seu
conforto, obviamente, mas por ter conseguido achar, ali, no lugar supostamente
mais improvável, o seu lugar. Tomado
como uma espécie de pai para algumas daquelas pessoas que também vivem em
situação de rua, torna-se o refúgio delas quando querem dar um tempo do uso
abusivo da droga, e ganha em retorno sua proteção de bando (em outras palavras,
seu amor, e o reconhecimento do seu valor no mundo). Entre uma vida
recapitulada em abandono e desamor, ainda que supostamente estruturada, e outra vivida enquanto proteção
mútua e reconhecimento, mesmo que no risco da saúde e do dia seguinte, habita o
limbo dessas duas linguagens, domina-as ambas, e vive duas realidades.
Sempre com uma
mochila nas costas – onde se podem encontrar livros, revistas, roupas, e toda a
vida que consegue carregar consigo – ele declara estar ciente de que a idade
está passando e de que está se tornando idoso. Reflete e questiona se deveria
pedir uma vaga em albergue, ou se talvez pudesse solicitar um auxílio moradia
pra alugar um cantinho para si. Ele
entende, no entanto, as implicações disso: entre viver na rua - onde encontrou
uma família e um lugar, onde conseguiu se reposicionar enquanto sujeito - e o
retorno para uma vida comum, confortável, porém a princípio solitária e
desamparada subjetiva e afetivamente, sente-se assoberbado com os muitos receios
que lhe rondam os pensamentos e as fantasias. Nessa vida comum, qual seria sua
função, seu lugar?
Afinal, de que
adianta ter um canto e uma promessa de conforto e segurança se sozinho não puder
dar sustento ao sujeito que pôde finalmente emergir nas ruas?
As vezes, mais difícil é viver a se adaptar a um mundo que vc não enxerga, não sente e não pertence. Soou meio psicopatológico, não?
ResponderExcluirO ser humano quer conforto? Não sei! Talvez queira desejar. Desejar a felicidade, por exemplo. Mas quem pode conseguir isto senão ele próprio? Que objetos lhe garantirão a felicidade? Os moradores de rua, parecem -me, não querem casa; querem lar. Não querem que lhe deem objetos querem buscar os seus próprios objetos.... parabéns pelo texto, perdoe-Me pelos devaneios da madrugada!
ResponderExcluirQue texto,Gratidão por essa reflexão
ResponderExcluirAcredito em cada palavra dita e também a ideia abordada onde traz sobre que é ideal ao ser humano, onde é o conforto da vida, qual é o lugar seguro pro ser humano viver,Acredito que na perspectiva do senhor aqui mencionado ele Tem seu lugar e função social que se encaixa na vida que ele se sente bem não como a sociedade diz ou no padrão de classe que se almeja. TRAZENDO OS VALORES DO BEM DO MAL DO QUE É BOM OU RUIM.