Nascido de um corte
longitudinal, não de um que se faz na barriga da mãe que carrega o bebê, mas de
um feito nele mesmo. Tão menino, acorda de seus longos dias moribundos, vítima
de uma violência que, literalmente, o corta da vida familiar. Daí pra frente,
esse se tornou seu significante, o corte.
A faca, seu instrumento de defesa (ou quaisquer outros objetos cortantes).
Havia aqueles – a maioria dos adultos, cuidadores, guardiões – que acreditavam
que o então rapaz poderia, de fato, usar o instrumento para reproduzir neles o
que houve consigo, e ter cuidado é sempre bom, especialmente se para tê-lo,
desenvolve-se alguma sensibilidade. Não era o caso, infelizmente. Ele resistia
aos novos cortes ameaçando fazê-los ele mesmo com o instrumento que estivesse
disponível. E quantos cortes lhe rondavam, quantos cortes nos rondam sempre...
Criado
institucionalmente, seu corte trouxe consigo um irmão, este que, recém nascido,
foi removido da família e colado a ele a fim de ser preservado de uma violência
similar. Este último, literalmente criado pela instituição, nunca entendeu sua
história, encoberta pelo tabu do corte que separava toda a vida anterior desta
e, sem nunca entender ter sido salvo pelo corte físico do irmão, nunca o
perdoara por ter sido alienado ao direito de ter um pai e uma mãe. A cegueira
de quem não viveu a história e daqueles que jamais conseguiriam sequer se
aproximar da dor que ela trazia, fez com que ligassem um ao outro, sem de fato
costurar suas histórias, sem nunca permitir que eles entendessem como seus
laços ultrapassavam o sangue e o DNA. O mais velho, carregando suas
reminiscências e sempre pronto a defendê-los de um novo corte, impedia qualquer
mudança, qualquer possibilidade de novos rompimentos, ao tempo em que,
inadvertidamente, acabava às vezes produzindo-os: transferências,
separações e finalmente, a desvinculação com seu resto de família, o irmão mais
novo.
Houve diversas
tentativas: brasileiros e estrangeiros, desejosos de ter filhos se aproximavam,
prometiam uma nova vida, mas o primeiro garoto, marcado pelo seu significante, usava
seu instrumento sempre que a coisa ficava muito séria. Os pretendentes
recuavam, é claro: quem vai condenar os futuros pais, submersos em sua fantasia
de família feliz, de não conseguirem lidar com a ameaça do corte real? O corte
simbólico, no entanto, aquele significante que mobilizava o
rapaz, incompreendido e incontrolável, só queria ele mesmo ser reparado. Tal
reconstituição e cura, no entanto, não era tarefa fácil. Não se faz com
represálias, nem mesmo com algumas sessões – sempre fragmentadas – de análise.
Jamais seria possível fazê-lo diante de uma história que não pode ser contada,
precisando ser revivida compulsivamente até... sabe-se lá até quando.
O desejo por
segurança, o medo do novo, tantas vezes nos prende ao velho tão inadequado, tão
desconfortável. A tal zona de conforto,
cujo nome parece, ao mesmo tempo, tão inapropriado e tão exato, nos segura ali,
“firmes”, e nos faz empunhar a faca para nos defender dos cortes da vida, para
defender nosso lugar já familiar diante de tão assustador futuro, já que ele é necessariamente obscuro e inacessível. É
preciso ser possível dar sentido à nossa história, poder contá-la e recontá-la
a nós mesmos, produzindo novas versões, novos entendimentos, até que possamos
tê-la exaurido, cortando-a finalmente de nossas vidas, não como esquecimento,
mas removendo dela o investimento, podendo lançá-lo adiante, dando um salto
rumo ao precipício de possibilidades que é o amanhã.
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