domingo, 1 de janeiro de 2017

Há que se fazer o corte

Nascido de um corte longitudinal, não de um que se faz na barriga da mãe que carrega o bebê, mas de um feito nele mesmo. Tão menino, acorda de seus longos dias moribundos, vítima de uma violência que, literalmente, o corta da vida familiar. Daí pra frente, esse se tornou seu significante, o corte. A faca, seu instrumento de defesa (ou quaisquer outros objetos cortantes). Havia aqueles – a maioria dos adultos, cuidadores, guardiões – que acreditavam que o então rapaz poderia, de fato, usar o instrumento para reproduzir neles o que houve consigo, e ter cuidado é sempre bom, especialmente se para tê-lo, desenvolve-se alguma sensibilidade. Não era o caso, infelizmente. Ele resistia aos novos cortes ameaçando fazê-los ele mesmo com o instrumento que estivesse disponível. E quantos cortes lhe rondavam, quantos cortes nos rondam sempre...
Criado institucionalmente, seu corte trouxe consigo um irmão, este que, recém nascido, foi removido da família e colado a ele a fim de ser preservado de uma violência similar. Este último, literalmente criado pela instituição, nunca entendeu sua história, encoberta pelo tabu do corte que separava toda a vida anterior desta e, sem nunca entender ter sido salvo pelo corte físico do irmão, nunca o perdoara por ter sido alienado ao direito de ter um pai e uma mãe. A cegueira de quem não viveu a história e daqueles que jamais conseguiriam sequer se aproximar da dor que ela trazia, fez com que ligassem um ao outro, sem de fato costurar suas histórias, sem nunca permitir que eles entendessem como seus laços ultrapassavam o sangue e o DNA. O mais velho, carregando suas reminiscências e sempre pronto a defendê-los de um novo corte, impedia qualquer mudança, qualquer possibilidade de novos rompimentos, ao tempo em que, inadvertidamente, acabava às vezes produzindo-os: transferências, separações e finalmente, a desvinculação com seu resto de família, o irmão mais novo.
Houve diversas tentativas: brasileiros e estrangeiros, desejosos de ter filhos se aproximavam, prometiam uma nova vida, mas o primeiro garoto, marcado pelo seu significante, usava seu instrumento sempre que a coisa ficava muito séria. Os pretendentes recuavam, é claro: quem vai condenar os futuros pais, submersos em sua fantasia de família feliz, de não conseguirem lidar com a ameaça do corte real? O corte simbólico, no entanto, aquele significante que mobilizava o rapaz, incompreendido e incontrolável, só queria ele mesmo ser reparado. Tal reconstituição e cura, no entanto, não era tarefa fácil. Não se faz com represálias, nem mesmo com algumas sessões – sempre fragmentadas – de análise. Jamais seria possível fazê-lo diante de uma história que não pode ser contada, precisando ser revivida compulsivamente até... sabe-se lá até quando.
O desejo por segurança, o medo do novo, tantas vezes nos prende ao velho tão inadequado, tão desconfortável. A tal zona de conforto, cujo nome parece, ao mesmo tempo, tão inapropriado e tão exato, nos segura ali, “firmes”, e nos faz empunhar a faca para nos defender dos cortes da vida, para defender nosso lugar já familiar diante de tão assustador futuro, já que ele é necessariamente obscuro e inacessível. É preciso ser possível dar sentido à nossa história, poder contá-la e recontá-la a nós mesmos, produzindo novas versões, novos entendimentos, até que possamos tê-la exaurido, cortando-a finalmente de nossas vidas, não como esquecimento, mas removendo dela o investimento, podendo lançá-lo adiante, dando um salto rumo ao precipício de possibilidades que é o amanhã.

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