Era uma manhã
qualquer, daquelas quentes, cotidianas e enfadonhas que qualquer um de nós tem
cotidianamente. Eu, a psicóloga, cumpria com minhas funções burocráticas: ligações,
relatórios, preenchimento de dados. Os adolescentes estavam na outra sala, ao
final do corredor, em atividade socioeducativa. Naquele dia eu não participava
da atividade e não havia atendimentos planejados previamente: o dia seria de
tarefas mecânicas e repetitivas.
De repente,
uma colega irrompe porta adentro e se dirige a mim dizendo que eu precisava
fazer o atendimento de um dos adolescentes, que ele não estava colaborando com
a atividade, que ele claramente estava com problemas e que só eu – a psicóloga –
poderia resolver! Só eu, ninguém mais! É claro que não foi bem assim e que eu
não havia nada de heroico na minha função. Ainda desconcertada com a abordagem,
aceitei a tarefa imposta.
O adolescente
entrou na sala de atendimento com aquela atitude de fingida indiferença, velha
conhecida minha ao trabalhar com ele e com outros como ele. Entrou e
permaneceu calado, afinal a demanda de estar ali não partiu dele e ele devia
sentir essa “conversa com a psicóloga” como uma punição por não colaborar na
atividade imposta a ele coercitivamente. A cada segundo silencioso, a tensão
parecia aumentar e ele parecia sentir-se mais coagido, como se a chave de sua saída
daquela situação fosse falar, mas não qualquer coisa; ele precisava falar algo
que me deixasse satisfeita com a conversa bem sucedida. Ele ensaiava dizer
qualquer coisa, mas precisava ter cuidado, havia segredos que não podiam ser
revelados.
Começou relatando
uma situação qualquer, da forma mais despojada possível: estava preocupado com
uma arma que foi encontrada no quintal da casa de uma pessoa, pela qual podia
ser incriminado. Da minha parte, aquilo não me dizia nada. Não sei se porque
não fazia sentido, porque não era inteligível pelo meu referencial pessoal, ou
se porque eu achava que saber daquilo só me deixava a par da existência de uma
arma de fogo que eu não sabia onde estava nem quem havia escondido. O claro
mal-estar do rapaz – que ficava mais claro a cada segundo suado daquela manhã infernal
debaixo de um ventilador barulhento – não se dissolvia nem se resolvia diante
daquilo que ele queria me vender como uma grande revelação. Ele logo percebeu
que não havia acertado a senha necessária para ser liberado dali.
Eu me perguntava, no entanto, se
cabia a mim, se era meu papel dissipar aquele mal-estar que parecia tão difuso, se aquilo se
referia ao meu trabalho ou se eu estava assumindo uma demanda – nem minha nem
do adolescente – mas dos colegas que, desconfortáveis, despejaram o rapaz na
sala de atendimento para que eu resolvesse algo indefinido magicamente. Esse
pedido que os colegas frequentemente fazem, e que nem sei se chega a ser um
pedido, mais parece se configurar como a última medida - ultima ratio -, como se a psicóloga fosse uma plataforma onde
se lança o dejeto de desfuncionalidade com o qual ninguém conseguiu lidar.
Ouvimos dizer
que em algumas profissões, é preciso ter raciocínio rápido. Puxar o gatilho ou
não, disparar a arma ou não, decisão a ser tomada em milésimos de segundos. Eu também
precisava decidir logo: permanecia ali ou não, perseguia aquela linha de
raciocínio ou não. Na dúvida sobre o que fazer ou como proceder, obedeci à
minha curiosidade: mas por que você seria incriminado por uma arma que não é
sua e que está num quintal que nem é o seu?
Daí em diante,
ele reconta a mesma história de diversas maneiras. Ingênua ou intuitivamente,
sem compreender ainda, eu continuo perguntando e tentando fazer sentido pra
mim. A cada pergunta e a cada nova versão da história, novos elementos. A cada
novo elemento disponibilizado, a indiferença dele ia se dissipando e se
transformava numa demanda ansiosa, que agora era dele: O que eu faço nessa
situação?, ele me perguntava nas entrelinhas. Mas eu ainda não conseguia
entender qual era a situação precisamente e a frustração crescia de ambos os lados.
Continuamos
nessa dança por minutos, longos minutos. Quantas fossem as formas de contar a
mesma história, tantas eram as novas perguntas que me vinham à cabeça.
Inicialmente tenso e coagido, ele agora me pedia algo, queria que eu ajudasse
naquela tomada de decisão e a ansiedade era outra, era agora a de revelar sem
revelar, a de se fazer entender sem explicar. Finalmente, as peças se encaixam,
eu construo um todo coerente com todos aqueles elementos e pergunto: foi
isso que aconteceu?
Ele, até então
tomado de angústia, respira aliviado mas estupefato ao mesmo tempo: “Como você
descobriu? Você entrou na minha mente!”,
e isso parecia uma acusação e um agradecimento ao mesmo tempo. Agora eu podia ajuda-lo
e ele tinha certeza de que não foi ele quem me contou (ele não era um “caboja[1]”),
mas eu é que tinha o poder – paranormal, aparentemente – de entrar em sua
mente. “O que eu faço?”, os seus olhos clamavam. Para sua decepção,
coloco as cartas na mesa e indico: aqui, a consequência parece ser essa, ali,
aquela. Decida. E ele já estava decidido, mas receava o que vinha daquilo.
Finalmente ele havia encontrado a chave e podia ir embora. Mas agora ele preferia continuar e levar consigo a minha reposta. Para o azar dele, eu era a guardiã daquela porta e fui embora, deixando-o com seus dilemas.
[1]
Gíria comum entre os adolescentes que indica uma pessoa não confiável, que
dedura o colega.
Muito interessante esta forma de descrever a realidade. O que será que vem na próxima publicação?
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