Havia sido uma escolha difícil.
Eu estava ambivalente. Triste em ter deixado pra trás amigos conquistados e
inimigos diante dos quais eu já me sentia blindada. O sentimento era de
insegurança e de dúvida. Será que tomei a decisão correta? Eu não sei lidar com
crianças, elas raramente gostam de mim... no caminho até ali eu não conseguia
parar de pensar e estava tomada por diversos receios, alguns irracionais, mas
muitos deles bastante coerentes – pelo menos a mim pareciam sê-los. Será que eu
havia sido dominada pela minha vaidade? Ele dizia, ao me convidar: “preciso de
pessoas experientes, preciso do seu know
how”... eu vislumbrava novos desafios, um certo pioneirismo... Não, era um
serviço novo, novos enfrentamentos, novo gás! É, já vinham me faltando as
forças pra encarar as dificuldades... é só o medo do novo... melhor assim... é,
melhor assim, vamos lá!
Nesse espírito de coragem
forjada, entrei naquela casa colorida. A fachada já desgastada ainda assim não
disfarçava o intuito de parecer um lugar atraente às crianças. Que falácia! Que
sedução perversa seria aquela! As crianças entravam naquele “mundo colorido”
sem saber quando e se voltariam para suas famílias... famílias violentas,
violadoras, mas suas famílias, até ali o que elas tinham como referência de
família... melhor suspender esse pensamento. É pro bem delas... é, um trabalho
importante... melhor entrar e começar.
A recepção que recebi, tão
ambivalente quanto meu próprio sentimento em estar ali, combinava elementos de
boas-vindas com uma hostilidade cortante: “ela veio tomar nosso lugar...” devia
ser uma ideia que povoava seus pensamentos. Elas tinham por tarefa me passar o
serviço e quando enfim eu dominasse o cotidiano do trabalho, elas deveriam ir
embora... elas sabiam disso melhor do que eu. Elas precisavam deixar claro, ao
mesmo tempo, do quanto foram felizes e trabalharam satisfeitos naquele lugar...
queriam me fazer sentir culpa por usurpar seu lugar? Bem, não fui eu, foi
decisão lá de cima... da justiça, da gestão, não minha... estou aqui sem saber
o que sentir, não aguento tanta hostilidade! Os diálogos diziam, entredentes:
“é um trabalho bonito, mas difícil, às vezes desestimula, geralmente é duro,
mas é importante, blá blá blá...”. Saio para tomar um ar e lembro dos
fumantes... essa é a hora que a tragada da nicotina deve abrir uma via aérea
extra, sei lá... mas eu não fumo... vejo um grupo de crianças sentadas no chão,
fazendo uma daquelas brincadeiras de mãos tipo “babalu” bem ao gosto do meu
tempo (meu Deus, como me sinto velha!). As crianças param e uma delas me
pergunta: “você é a nova psicóliga?” – sim, ela falou assim, não é erro de
digitação – segura minha mão e me convida a entrar na brincadeira: “é assim, tia!” (muito, muito velha!).
Finalmente sou franca e
sinceramente acolhida. Brinco com as meninas, acompanho suas conversas tão
pueris... suas bagagens eram até mais pesadas que a de muitos adultos por aí,
eu soube logo depois, mas elas tinham uma leveza e uma honestidade no olhar que
foi uma delícia de encontrar. Tomo novo ar, levanto e resolvo ir dar uma olhada
na “sala do psicólogo”; essa sala era um tabu, para os profissionais e para as
crianças. Impecável, como só um cômodo intocado seria, magnetizava qualquer um
para o seu interior. Aquela criança, à espreita, aproveita a brecha que deixo
na porta – afinal, de tão esguia, ela passaria facilmente por qualquer espaço
que eu deixasse, e pela primeira vez a pessoa adulta não parecia preocupada em
te barrar a passagem – entra, quase tão encantada quanto eu e, ao se deparar
com o “mini-divã”, pergunta: “tia, pra que serve isso?”. Tão simples e
didaticamente quanto me parecia possível, respondo: “para deitar e falar”.
Assim, ela deitou e falou. Aposto
que tal experiência sequer Freud deve ter vivido com o dispositivo que
inventou. Ninguém sabe associar livremente como uma criança! Sim, foi essa a
lição do dia. E sua narrativa era como um poema trágico: eivadas de violências
duras de escutar, suas palavras traziam uma singeleza e falavam de tudo aquilo
com uma naturalidade assustadora. Seria tão leve porque a criança ainda não
entende tamanha dureza? Ou seria a naturalidade de crescer vítima de tantas
violências que apontaria um futuro de naturalização de novas violações? Ser
menina, ser mulher, ser vítima, ser dona de si... e ela não devia ter sequer
sete anos. E ela não parava de contar sua história. Ela precisava falar? Ela
precisava me cooptar? Eu era testemunha ou era suporte? Referência ou
receptáculo? Eventualmente, ela pára de falar; com os olhos, pede autorização
para mexer nos brinquedos e eu não posso negar. Era uma troca? Ela me dá o
material que supõe que eu demandaria em troca de minutos com os brinquedos
inacessíveis? Não, não pode ser só isso... deve ser um pouco de tudo.
Mundo institucionalizado, incrustrado num
castelo de cores e de fantasias sem qualquer fantasia, porque o real do mundo
está às voltas. Os pesadelos constantes, as masturbações compulsivas, a enurese
e os terrores noturnos... a dor, os segredos, os não ditos e também os ditos
até a exaustão, até o desgaste, até a mentira. Ali se iniciava, pra mim, um
novo mundo, uma nova dimensão possível do mundo de Alice que, depois de
escolhida, não teria mais volta. Eu não quis mais voltar, e sei que, caso
quisesse, não conseguiria. Ali começava toda uma desconstrução e reconstrução
do “ser criança”, um novo entendimento daquele mundo, inclusive dentro de mim
mesma.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Divida comigo suas impressões